Para repensar a escola

Roseane Daminelli: “Para Freinet, a criança é da mesma natureza que o adulto”

Roseane Daminelli Gomes explica de que modo a pedagogia humanista criada por Célestin Freinet fornece as ferramentas para o desenvolvimento escolar e social da criança

Roseane Daminelli Gomes, estudiosa da pedagogia Freinet. Foto: Reprodução/Nova Escola

Quando Roseane Daminelli Gomes, especialista em Psicologia Escolar e da Aprendizagem, conheceu a Pedagogia Freinet, ainda durante a graduação, encontrou exatamente o que procurava. "Nunca fui uma professora tradicional. A pedagogia desenvolvida por Célestin Freinet [1896/1966] preconiza que uma criança não é um vir a ser, ela já é, e era dessa forma que eu já pensava."

A criança, na visão humanista do educador nascido na França, tem papel ativo no aprendizado. A prática se dá diante de situações reais e o estudante se desenvolve não só do ponto de vista pedagógico, mas também social.

Quais fatores levaram Célestin Freinet a desenvolver seu método pedagógico?

Quando assume a função de educador, em 1920, já com o desejo de uma escola diferente, Freinet observa que as crianças são passivas, apáticas e submissas dentro da sala de aula, porém repletas de vivacidade no momento do recreio. Começa então por mudar a organização do espaço, retira o tablado onde fica o professor e coloca as carteiras, antes enfileiradas, agrupadas de modo a que um estudante possa ver o rosto do outro. Dessa forma educador e educando ficam no mesmo nível. Ele introduz a aula passeio, o texto livre, a imprensa escolar e as correspondências entre escolas. Com esses mecanismos, alfabetiza para além de decodificar palavras e frases sem sentido. A educação se dá pela prática.

Como se dá essa prática?

Quando as crianças saíam para descobrir o entorno da escola, explorar a natureza, visitar os pais no trabalho, na volta escreviam textos livres sobre a experiência. Após a escrita, elegiam um desses textos e trabalhavam a ortografia, corrigiam e imprimiam. Essa imprensa que usa prelo, os tipos, foi um grande acontecimento e levou Freinet a se tornar conhecido em toda a Europa. A experiência começou a ser compartilhada com outras escolas e essas técnicas são usadas até hoje. Saiu o prelo, entrou o computador. Nos inspiramos na técnica e a adaptamos às condições possíveis, por isso dizemos que a Pedagogia Freinet é um movimento que muda conforme a época, a localização e a cultura.

De que forma esse método revolucionário impactou a sociedade da época?

Freinet era tido como comunista e sua prática vista com receio e hostilidade, pois incomodava. Ao percorrer os arredores, as crianças às vezes observavam situações capazes de provocar questionamentos. Entre os casos vivenciados pelos alunos do educador francês está a negociação injusta entre um antiquário e o dono de uma cadeira. Eles percebem que o valor oferecido pelo produto é irrisório e questionam o comerciante. Em outra saída a campo, as crianças constatam a apropriação indevida de um pedaço de terra. Eram vivências desconfortáveis para a comunidade e daí a fama de revolucionário daquele homem contrário à educação tradicional. Ele enfrentou muitos problemas até criar a própria escola [erguida por Freinet e sua mulher, Élise, em 1935, na cidade francesa de Saint-Paul de Vence].

Como foi esse processo?

Freinet percebe que numa instituição escolar particular não será possível levar adiante seu projeto de construir uma escola do povo e para o povo. Ali o envolvimento afetivo é um dos motores do aprendizado. Nessa nova escola, valoriza-se o êxito, não o erro.

Qual o papel de alunos e professores no método Freinet?

Nesta pedagogia que tem por princípio autonomia e cooperação, num ambiente de pensamento no qual a criança tem voz, é cidadã, a aquisição do conhecimento é coletiva. O professor deixa de ser o centro, ocupado agora pela criança, e todas as decisões são em grupo. O professor mantém seu papel de orientador, mas sai de cena a figura do mestre punitivo. No caso dos bem pequenos, a roda de conversas é um estímulo para que exponham dúvidas e problemas para todos juntos decidirem o que fazer. 

Qual a função da afetividade no sistema criado pelo educador francês?

Tudo é baseado na afetividade. A criança é da mesma natureza que o adulto, diz Freinet. Se gostamos de ser ouvidos, as crianças também. Assim, elas começam a falar o que pensam sem temer represálias, a interagir, a ser mais críticas e participativas. As famílias percebem que algo diferente está acontecendo, que os filhos estão mais felizes e gostam mais de ir à escola. 

De que forma a metodologia de Freinet se articula com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)?

Os direitos de aprendizagem preconizados pela BNCC estão intimamente relacionados com o que Freinet diz sobre a necessidade de a criança expressar sentimentos e ideias, se comunicar, se organizar, se avaliar. O ambiente na sala de aula é de democracia. Em tempos sombrios, é uma forma de resistência. São quase cem anos de Pedagogia Freinet e essa longevidade mostra que não se trata somente de uma prática, mas também de uma teoria que se sustenta.

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