Para aprender com a prática

Eu não ando só: união e gestão democrática contra crise do coronavírus em Manaus

A adoção de princípios democráticos ajudou a EMEF Waldir Garcia a se unir na adversidade. Conheça a experiência e as atitudes para abrir a gestão escolar ao diálogo permanente

Ilustração de professora olhando pela janela da casa de um aluno que está sentado em seu sofá desanimado.
Ilustração: Tayná Marques/NOVA ESCOLA

Quando a covid-19 chegou em 2020, encontrou a EMEF Professor Waldir Garcia, em Manaus (AM) unida. Não foi fácil lidar com o impacto que o vírus provocou, como se verá adiante, até porque a capital do Amazonas se tornaria o triste epicentro da pior fase da pandemia, que, ao final daquele ano, provocaria um verdadeiro colapso na cidade. Mas quando uma escola se abraça, trabalha coletivamente, cuidando uns dos outros, até os piores momentos se tornam uma afirmação de que caminhar de mãos dadas é melhor do que sozinho.

A adoção de princípios democráticos por uma escola é um processo, como explica a especialista Maura Barbosa, que não é simples nem fácil ou imediato. No entanto, a gestão democrática pode, sim, ajudar a comunidade escolar a reagir também diante de novos e velhos desafios trazidos à tona pela pandemia.

No então epicentro da crise sanitária, a Professor Waldir Garcia tomou a decisão coletiva de não deixar ninguém para trás quando verificou que a vulnerabilidade social dos 227 alunos do 1º ao 5º ano atendidos pela escola era ainda maior do que se imaginava. Com a fome rondando as famílias, a comunidade financiou coletivamente cestas básicas, além de conseguir doações de celulares para os alunos acessarem as atividades remotas.

Mais recentemente, com a volta presencial das crianças, a escola tem promovido transmissões ao vivo e postado na página do Facebook as ações desenvolvidas no espaço escolar. Nela, há registros da diretora em assembleia com os alunos do 4º ano e também em encontros com os familiares e responsáveis para traçar as estratégias de ensino ao longo da pandemia.

A história da escola com a gestão democrática, porém, começou há 4 anos. 

Em fevereiro de 2016, Lucia Santos decidiu iniciar uma gestão democrática, participativa e colaborativa na escola que dirigia, com todas as decisões sendo tomadas em assembleia, que se tornaram instâncias não apenas consultivas, mas deliberativas. 

“Começamos a tomar as decisões no coletivo, e isso não é fácil, porque nós todos estudamos em escolas tradicionais, fomos formados em faculdades também tradicionais. Eu tenho professores que estão aqui há mais de 30 anos, que se formaram há muito tempo, e estão acostumados a trabalhar com metodologias bem tradicionais. Então, trazer uma prática inovadora, como são as metodologias ativas, romper com esse modelo de gestão, fazer essa desconstrução, é muito difícil. No começo, foi até bem doloroso”, comenta a diretora, hoje citada como exemplo e que ganhou, em 2020, o Prêmio Educador Nota 10. 

Uma das primeiras decisões do coletivo de professores foi acabar com as filas. “Antes das aulas, os alunos estavam acostumados a ficar em fila, ouviam o hino, uma oração, e cada professor puxava sua turma pela fila e levava para a sala de aula. Abolimos isso, cada aluno passou a ter autonomia para ir direto para a sua sala.”

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Atitudes para fortalecer a democracia na escola


1. Leve as decisões para o coletivo: Crie assembleias e reuniões coletivas regularmente para ouvir professores, alunos e comunidade escolar. É interessante ir além da consulta e abrir-se para as deliberações do coletivo. Regras e combinados dessa participação também devem ser construídos coletivamente. 

2. Abrace a transparência: O diretor, em especial, precisa adotar uma postura transparente e construir espaços para dialogar com todos antes de tomar decisões. 

3. Estude as experiências democráticas e inovadoras: Proponha grupos de estudo sobre o tema com a coordenadora pedagógica, os professores, familiares e outros interessados. No caso, Lucia e sua equipe aprofundaram-se na experiência da Escola da Ponte e de outras instituições escolares marcadas pela democracia. 

4. Valorize e promova a autoavaliação: É importante incluir a visão do aluno em todo o processo de aprendizagem, inclusive na avaliação. A escola gerida por Lucia aboliu as avaliações tradicionais e passou a trabalhar com um modelo em que a criança atribui uma nota para si, validada ou não posteriormente pelo conselho escolar. 

5. Aposte nas tutorias: Estender o papel de ensinar a toda a comunidade escolar é uma proposta que também fortalece a democracia e a participação nas escolas.

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Ela conta que essa pequena mudança foi como se tivessem destapado um caldeirão de energia. As crianças, antes contidas e inseridas em um contexto onde “entravam mudas e saíam caladas” – na expressão da diretora –, agora se atropelavam pelos corredores e escadas, deixando professores e familiares apreensivos. O passo seguinte foi rever algumas regras de convivência nas assembleias, que passaram a acontecer semanalmente.

Em seguida, o grupo decidiu acabar com as filas também nas salas de aula. Ela explica que decidiram cortar os apoios das cadeiras tipo universitárias que tinham e solicitar à prefeitura o envio de mesas redondas nas quais pudessem ser reunidos grupos heterogêneos, em um novo formato.

Mas, com essa mudança, além da inserção da escola no regime de tempo integral, outras alterações precisaram ser feitas, de ordem pedagógica, já que a nova configuração nas salas de aula, se por um lado aumentava o convívio entre os alunos da própria turma, despertando neles o espírito colaborativo, por outro colocava alguns alunos de costas para a lousa.


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Ao mesmo tempo que lidavam com o desafio de abandonar o tradicional suporte da lousa e se adaptarem a uma nova configuração de sala de aula, o corpo de professores que abraçaram a proposta de mudança e a decisão de não deixar nenhum aluno sem aprender se viu duramente questionado por um grupo de pais (e até de crianças) que exigiam a volta da “velha escola, das filas, da disciplina”. Ela conta que chegou a ser abordada por um grupo de pais lamentando a “bagunça” que havia se tornado a escola, saudosos de um modelo disciplinador com o qual estavam acostumados. Alguns chegaram a abrir queixa na Secretaria de Educação, relatando, preocupados, que seus filhos não tinham mais lição de casa e que a diretora estava “piorando” a escola.

Lucia conta que, naquele momento inicial de implantação do novo formato de gestão, ela e o grupo de professores e funcionários da escola contaram com o apoio de outros pais, estes integrantes de um grupo chamado Coletivo Escola Família Amazonas, formado por professores universitários e pessoas atuantes na sociedade civil, que haviam tirado seus filhos de escolas particulares para matriculá-los na EMEF Professor Walter Garcia.

Juntos, esses pais que apoiavam a proposta de gestão democrática, os professores, a coordenadora pedagógica e a diretora começaram a se reunir semanalmente para estudar experiências e autores que apontavam outro caminho para a escola – uma trilha semelhante à feita pela Escola da Ponte e relatada pelo escritor Rubem Alves no livro A Escola Que Sempre Sonhei Sem Imaginar Que Existia (Editora Papirus).

Roteiros, tutores e uma nova dinâmica

Do livro sobre a Escola da Ponte chegaram até documentários e depoimentos de outras experiências de gestão democrática que estavam acontecendo do lado de cá do Oceano Atlântico, em São Paulo.

E nas férias de julho de 2016 formou-se um grupo de 25 pessoas da escola que, com a ajuda até financeira do coletivo de pais engajado na mudança, veio conhecer oito experiências inovadoras na capital paulista. Entre elas, conheceram e conversaram com professores e gestores de três escolas públicas (Amorim Lima, Campos Salles e Gabriel Prestes), o que sinalizava que esse caminho era possível. E a visita revelou para o grupo a saída pedagógica para o novo formato das suas salas de aula com mesas redondas: os roteiros de estudo, uma metodologia ativa que dispensa a lousa e permite que uma mesma turma compartilhe quatro ou cinco roteiros diferentes, em estágios também diferenciados, e cada aluno em seu passo de aprendizagem.

“Os roteiros de estudos são interdisciplinares, têm páginas de livros, indicações de sites, mostram onde o aluno pode estudar determinado assunto. Para que ele possa fazer isso com autonomia, e o professor assim passa a ser um mediador”, explica a diretora, que conta que o grupo retornou da viagem renovado em suas esperanças.

Para Lucia, a heterogeneidade da escola pedia que se respeitasse o tempo de aprendizagem de cada um. “Com os roteiros de estudo, personalizamos a aprendizagem porque uma mesma turma pode ter quatro ou cinco roteiros de estudo diferentes. E um ajuda o outro na mesa. E eles aprendem muito mais entre pares”, observa Lucia, que relata alguns desafios que toda experiência que sai do formato tradicional precisa enfrentar: “Foi bastante difícil no começo elaborar os primeiros roteiros (agora os professores já pegaram bastante prática). Mas quando começamos a ver o envolvimento das crianças com aquele formato, como elas começaram a se ajudar, como iam avançando na aprendizagem, foi muito bom. Buscamos a equidade, mas no sistema antigo as diferenças eram acentuadas. Quando adotamos as metodologias ativas, vimos que isso foi sendo facilitado, todos passaram a se ajudar”. 

A escola também acabou com a avaliação tradicional e passou a trabalhar com a autoavaliação. A criança se autoavalia, atribui uma nota para si, e essa avaliação depois é validada ou não pelo conselho escolar.

E mais mudanças continuaram a acontecer a partir da visita às escolas democráticas de São Paulo. “Se antes já tínhamos as assembleias, nos segundo semestre [de 2016] passamos a trabalhar com grupos de estudo, grupos de responsabilidade, com projetos de vida e com as tutorias”.

A experiência das tutorias, no caso da experiência na EMEF Professor Walter Garcia, seria adaptada, mas de certa forma também ampliada em relação à que já estava em curso na EMEF Amorim Lima, escola do Butantã que há décadas seguiu o caminho da gestão democrática. Nesta, os tutores são apenas os professores e a função está focada no desempenho acadêmico dos estudantes.

Em Manaus, tanto professores quanto funcionários, e até pais voluntários, podem ser tutores, e o foco é diferente, explica a diretora: “Para nós, a função do tutor é estabelecer uma relação de confiança, de amizade e de escuta. E assim, todos da escola, do auxiliar de serviços gerais à merendeira, do porteiro à diretora, todos são tutores”. Cada tutor tem em média de oito a nove tutorados de todas as séries, e uma vez por semana se reúnem e conversam. Com isso, a aprendizagem passou a ser compartilhada entre todos, e todos na escola são educadores, independentemente da função que exerçam na escola.

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