Para discutir a prática

O acolhimento como fio condutor do planejamento anual

Educadores destacam a importância de trabalhar as várias dimensões do acolhimento – emocional, pedagógica e de segurança com a saúde – com ações contínuas para além do momento de recepção dos alunos no início do ano letivo

Ilustração animada de docentes e gestores em momento de acolhimento.
Ilustração: Yasmin Dias/NOVA ESCOLA

Relatório global divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no último dia 24 de janeiro, Dia Internacional da Educação, mostrou o cenário delicado da Educação no planeta, após dois anos de pandemia. Em países de baixa e média renda, até 70% das crianças de 10 anos mostram-se incapazes de ler ou compreender um texto simples, em comparação com 53% antes da pandemia. Já no Brasil, em vários estados, cerca de três em cada quatro crianças do 2º ano estão fora dos padrões esperados de leitura para a faixa etária, número acima da média de uma em cada duas crianças, registrado antes do surgimento da Covid-19. 

Os dados negativos de aprendizagem não são consequências apenas do período de fechamento das escolas ou do ensino remoto emergencial, mas de um emaranhado de perdas sociais, econômicas e emocionais somadas nos últimos dois anos. No Brasil, segundo dados oficiais, mais de 624 mil pessoas morreram pela Covid-19 e cerca de 25 milhões adoeceram; a renda da população caiu drasticamente e o país registrou mais de 51,9 milhões de pessoas voltando a viver abaixo da linha da pobreza.

Diante de contexto social tão sensível, a escola precisa estar aberta à escuta mais do que nunca neste início de ano letivo. Para educadores ouvidos pela NOVA ESCOLA, as ações para conter as perdas de aprendizagens, mitigar a evasão e reposicionar a escola como espaço fundamental de troca de conhecimentos e de relações humanas demandam um planejamento para 2022 que adote o acolhimento como fio-condutor, trabalhado em dimensões múltiplas: emocional, pedagógica e de segurança com a saúde.

“Historicamente a escola sempre teve dificuldades de fazer o acolhimento dos estudantes. Sempre se pensou apenas em ações mais concentradas nas crianças ou nos alunos que estavam chegando nos anos iniciais – muito focada apenas na apresentação dos espaços escolares, por exemplo –, ou naqueles egressos dos anos finais”, analisa Walkiria Rigolon, formadora de professores e de coordenadores pedagógicos. “Dificilmente o acolhimento é pensado como uma ação pedagógica planejada e sistematizada para todas as etapas de ensino. Agora, com a pandemia, o afastamento das crianças da escola, o medo, o luto, o empobrecimento de muitas famílias, é preciso repensar o que é acolher para além do que sempre foi feito”, completa.

Para Sônia Guaraldo, formadora de gestores escolares, a recepção dos alunos no início do ano letivo é passagem marcante e deve ser desenvolvida em todos os seus aspectos – festivo, afetuoso, orientativo etc. –, para marcar a escola como local seguro, agradável e acolhedor, mas deve-se ir além: “A escola precisa refletir sobre como o acolhimento será pensado e incluído no planejamento diário das aulas, com ações constantes”, destaca. 

Angela Di Paolo, professora de Pedagogia e Psicopedagogia do Instituto Singularidades, segue na mesma linha e coloca ser preciso pensar o acolhimento como tema transversal na escola, e que exige participação de todos: “Não é questão de trabalhar as questões socioemocionais apenas em uma disciplina, ou em atividade com hora marcada. Situações trazidas pelos alunos se impõem e os educadores precisam atuar”, diz.  

Escuta e diálogo para entender o contexto do aluno 

Para conceber a ideia de acolhimento como uma ação continuada para todo o ano letivo, e não apenas concentrada nos primeiros dias de aula, as escolas necessitam, logo de partida, potencializar o contato com as famílias. “É preciso estabelecer novos vínculos com as famílias. Deixar de lado as reuniões expositivas e informativas e tornar os encontros mais dialógicos”, afirma Walkiria. Aberto esse canal de escuta, os educadores poderão compreender como foi a vida das famílias durante a pandemia: se ficaram doentes, de luto, se perderam emprego; entender como está a saúde mental dos pais e responsáveis e tudo o que mudou no entorno do estudante nos últimos dois anos. Certamente todos mudaram em algum nível.

Após a rodada de conversas com os pais, feita ainda no final de 2021, a gestão da EE Professora Josefina Maria Barbosa, de São Paulo (SP), percebeu que muitas famílias não planejavam matricular os filhos neste ano letivo: “Pela perda de renda, por exemplo, muitas deixaram de incluir no orçamento de casa os gastos com transporte do aluno até à escola, por exemplo”, afirma a coordenadora pedagógica Cleide da Silva Sousa. Com o aumento de casos de Covid-19 em janeiro, outros responsáveis também já externaram preocupação com a volta presencial. “Teremos que ter um olhar amplo neste ano para trazer as famílias de volta e passar mais tranquilidade, além de conscientizá-las sobre a importância da escola”, analisa.  

Com o diagnóstico do contexto de vida dos estudantes, professores e gestores poderão compreender melhor o tipo de vínculo que o aluno conseguiu manter com a escola nos dois últimos anos, e que justifica os resultados do levantamento dos conhecimentos prévios que as crianças e os jovens conquistaram até ali.

É com base em todas essas informações que os educadores vão conseguir partir para a priorização dos conteúdos curriculares, sob uma ótica mais abrangente e que pode ampliar as ações de amparo. Para Walkiria, essa análise geral e inicial precisa ser um trabalho coletivo, portanto, não adianta cada professor fazer apenas a avaliação de sua turma. “Além de planos individuais para cada aluno, as escolas devem traçar estratégias com objetivos em comum, com olhar para toda a comunidade escolar”, analisa. “Por exemplo, é importante pensar, na priorização, que temas como higiene e vacinação, do 5º ano, precisam também ser abordados no 1º ano, com linguagem adaptada e conteúdo contextualizado para as crianças menores.”

Competências gerais e socioemocionais juntas 

Na prática, as ações de acolhimento podem ser mais específicas, como as rodas de conversas com estudantes, por exemplo, mas também compreendidas de forma mais ampla, com uma reavaliação das metodologias de ensino aplicadas em sala de aula, ou seja, no jeito de ensinar, para atender o novo momento escolar. “Professores precisam avaliar quais metodologias podem ser revistas e, assim, realinhar expectativas de aprendizagem”, coloca Angela, do Instituto Singularidades.

A professora Valéria Batista dos Santos, da EE Milton Azevedo, localizada em Aquidabã (SE), por exemplo, pretende reforçar os trabalhos em grupo com sua turma do 3º ano. A ideia é fortalecer a aprendizagem, mas também estreitar as relações entre os estudantes: “Na volta às aulas presenciais, em agosto do ano passado, percebi que os alunos tinham perdido a capacidade de sociabilização”, conta.

Importante lembrar que as competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) também incluem competências socioemocionais para apoiar o planejamento dos educadores por todo o ano. “As competências socioemocionais trazem muitas possibilidades de trabalhos de acolhimento. Então, é importante abrir espaços e oportunidades para que elas ajudem a criar sentido aos conteúdos que os alunos estão estudando”, afirma Sônia. 

“Abordar as competências socioemocionais não significa abrir mão dos conteúdos, mas trabalhar em conjunto”, avalia Bárbara Munhoz de Freitas, professora de História dos Anos Finais do Ensino Fundamental no Colégio Mater Amabilis, em Guarulhos (SP), que faz especialização de metodologias ativas com foco na potencialização das competências socioemocionais. Bárbara também acredita que o momento é de priorização dos trabalhos em grupo, mesmo em um contexto ainda de ensino remoto, para contemplar todos os estudantes, os que estão na escola ou em casa. “Importante formar grupos pequenos, com três a quatro participantes, com abertura de câmera para criar ambiente mais acolhedor, e estimular a construção do saber de forma coletiva”, analisa. 

Depois de anos tão difíceis e mais um que já se coloca desafiador, os estudantes precisam sentir que não estão sós. “As crianças precisam entender que vão ter ajuda da escola para aprender durante todo ano”, lembra Sônia. “O olhar do professor precisa ser generoso, e não classificatório ou que divida os alunos. A escuta deve ser atenta para o que a criança traz. E é importante lembrar: as defasagens de conteúdo existem, mas elas não são defasagens de conhecimento”, analisa Selma Monteiro, orientadora de ensino da Escola de Formação de Educadores da rede pública municipal de São José dos Campos (SP).

As atividades de acolhimento para a recepção de alunos podem ser um pontapé inicial para um plano anual voltado para o tema. Confira algumas sugestões para cada etapa: Educação Infantil, Anos Iniciais do Ensino Fundamental e Anos Finais do Ensino Fundamental.

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