Professor de Educação Física não vai ensinar, mas sim tematizar, afirma especialista
Marcos Neira fala sobre como o professor vai proporcionar uma ampla variedade de vivências aos alunos, conforme proposta da Base
Marcos Neira, um dos maiores especialistas brasileiros da área, afirma que tematizar, na Educação Física, é abordar uma prática corporal de variadas maneiras, algo que já é feito em muitas escolas. O professor da Universidade de São Paulo conversou com Nova Escola sobre os desafios da implantação da Base para o componente de Educação Física. Confira a seguir.
NOVA ESCOLA: No documento da BNCC, foi mantido um grande leque de possibilidades de vivências de práticas corporais nas aulas de Educação Física. O que está por trás dessa concepção?
Marcos Neira: Até meados dos anos 80, o ensino de certas modalidades esportivas na escola vigorava enquanto resquício da legislação, que determinava isso. Mas, desde o começo dos anos 90, danças, lutas, ginásticas, jogos e brincadeiras também estão contempladas nas aulas de Educação Física. Isso já está consolidado na literatura, inclusive. Então, o primeiro ponto, a meu ver, é considerar que a Base, nesse aspecto, não traz nenhuma novidade.
Acredita ser possível tematizar todas as práticas, da forma que está proposto no documento? De que forma?
Tematizar é abordar uma prática corporal de variadas maneiras e isso vem sendo feito em muitas escolas. A visão que se tem de que a aula de Educação Física é para executar exclusivamente as técnicas corporais está ultrapassada. O professor pode planejar aulas que saiam dessa concepção. Ele pode, por exemplo, oferecer uma vivência da prática corporal, seguida de discussão; passar um vídeo seguido de uma vivência; visitar um lugar, com os alunos, onde aquela vivência aconteça, permitindo que contemplem, analisem a prática e conversem com seus representantes. É isso o que está por trás da noção de tematizar as brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas. O importante é que os alunos aprendam a ler a prática corporal e a reconstruí-la na escola. Eles precisam entender como essa prática corporal acontece na sociedade e, com esse objetivo em mente, o professor pode pensar em atividades diversificadas.
Como fazer a seleção dos conteúdos que serão trabalhados em aula?
É preciso fazer o mapeamento do universo cultural corporal disponível aos estudantes e confrontá-lo com os objetivos explícitos no projeto pedagógico da escola. Não é só pegar a Base e ir tratando as habilidades em uma sequência de aulas, como quem faz um checklist. As competências a serem desenvolvidas devem ser selecionadas em função dessas duas variáveis.
E como fazer esse mapeamento?
Pode-se conversar com as crianças, jovens, adultos e idosos, com os funcionários da escola, passear pelo bairro, observar os momentos de intervalo. Geralmente, o professor que está há muito tempo na escola conhece o patrimônio cultural corporal dos estudantes. É com isso que as atividades propostas precisam dialogar.
Danças e Práticas de Aventura aparecem pela primeira vez, nesses termos. O que isso muda para o professor?
As danças já apareciam nos documentos anteriores, com outra denominação. Portanto, a Base não mudou nada para o professor. Quanto às práticas de aventura, não há consenso sobre essa forma de classificação. O mais comum são esportes radicais. Mas estamos falando de skate, slackline, parkour, que o professor poderá tematizar. Aliás, também não há consenso sobre a forma de classificação dos esportes, sendo essa, inclusive, passível de críticas. A Base, que deveria ser agregadora, nesse aspecto, dificulta a vida do professor, sobretudo quando varia os critérios para definição dos objetos de conhecimento.
De que forma o professor que não tem formação específica em lutas, danças etc. pode ministrar aulas sobre o assunto? Como lidar com esse desafio?
Nunca nenhum professor estará superatualizado com todas as práticas corporais existentes, pois elas se reinventam a todo momento. A questão central é que ele não vai ensinar e, sim, tematizar. Conheço professores que tematizaram o hand spinner, o slackline, o minecraft, o samba, a salsa, o tênis, o MMA. Eles foram acessando essas práticas junto com os estudantes, o que transformou as aulas em espaços importantes de diálogo.
Manter o aluno motivado é outro grande desafio. De que forma as atividades planejadas pelo professor podem contribuir para que mesmo aquele que diz “não gostar de Educação Física” torne-se mais participativo?
O mais importante, é selecionar práticas corporais que tenham a ver com os estudantes, a partir do mapeamento de que falamos. Se o professor insiste em “transmitir” o conhecimento das práticas corporais que não dialogam com eles, vira imposição. As aulas de Educação Física não existem para fixar a gestualidade de uma manifestação que os alunos nem conhecem, mas sim para tematizá-la, o que significa realizar variadas atividades. Até mesmo quem não quiser vivenciá-la poderá envolver-se de outra maneira.
Se há o propósito claro de incluir todos os alunos nas aulas, independentemente do desempenho e do nível de habilidade, como o professor deve se posicionar a respeito? Muda a forma de planejar e realizar as atividades, no dia a dia?
A Educação Física não está mais nas ciências biológicas, mas na área das linguagens. Então, em tese, não há nenhuma novidade, a Base dá prosseguimento ao que já está consolidado. De qualquer forma, é interessante pensar que os alunos podem se envolver na tematização de variadas maneiras: dar ideias sobre coreografias ou levantar os melhores instrumentos para acompanhar uma dança são maneiras de participar, por exemplo. A sala de aula é muito diversificada, reúne pessoas com histórias e trajetórias corporais diferentes e, por isso, não dá para esperar que haja o envolvimento de todos da mesma forma. O professor pode realizar atividades que valorizem diferentes formas de expressão e produção, logo, ampliará as possibilidades de participação.
Gostaria de dar outras orientações aos professores, em relação às mudanças trazidas pelo novo documento?
Os professores, coletivamente, precisam ler o documento, estudar, analisar e pensar nos projetos da escola, antes de planejar suas aulas. O que é fundamental é entender que a Educação Física, hoje, está em um outro lugar, não persegue a construção de corpos hábeis e magros, que vão simplesmente adequar-se ao paradigma dominante. O mais importante é oferecer condições para que todos possam ler as práticas corporais, posicionar-se sobre elas, recriá-las e, o mais importante, ampliar o modo de significá-las. Para tanto, é fundamental acessar um amplo conjunto de saberes sobre elas e isso só é possível nas aulas de Educação Física.
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