Três gestoras de cidades diferentes, mas com uma proposta em comum: abraçar a Educação Integral em suas escolas
Saiba qual é o papel da gestão em instituições que defendem essa concepção educativa e conheça os encantos e desafios na voz de duas diretoras e uma coordenadora pedagógica de diferentes regiões do país
Um dos fundamentos pedagógicos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Educação Integral dialoga com o desenvolvimento pleno da pessoa, que amplia os aspectos cognitivos, incluindo os sociais, emocionais, físicos e os híbridos (como a criatividade e a criticidade). O gestor escolar tem papel importante nessa nova concepção de aprendizagem, que amplia o currículo para além dos conteúdos e olha para as atitudes e práticas no ambiente escolar. E no contexto de quase dois anos de pandemia, pensar o ensino para além da dimensão intelectual do aluno tornou-se ainda mais decisivo.
“A escola pede uma liderança talentosa e eficaz, que promova um ambiente de formação e aprendizado ao longo da vida. O diretor e o coordenador pedagógico precisam ter a capacidade de liderar a formação dos professores, trabalhando a aprendizagem baseada em projetos, as metodologias ativas, mudando o ambiente da sala de aula para estimular a colaboração e a pesquisa e considerando os novos ritmos e tempos dos alunos”, comenta Mozart Neves Ramos, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), relator da BNC-Formação de professores e da Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar. “Essa complexidade de gestão acontece porque o cenário agora se tornou ainda mais disruptivo.”
Nesta reportagem ouvimos três educadoras que se aproximaram da Educação Integral a partir de diferentes trajetórias profissionais, contextos escolares e necessidades dos estudantes de suas escolas. Tudo se combinou de maneira única e, mesmo que cada experiência seja singular, guarda componentes que fazem parte do cotidiano de muitas equipes gestoras Brasil afora.
O crescimento integral das crianças na zona sul de São Paulo
Na Escola Estadual Professora Clorinda Tritto Giangiacomo, a diretora Mara Roseli Gomes começou, em 2017, a construir um projeto pedagógico que incluía as competências socioemocionais e a formação integral dos estudantes. A instituição atende 530 alunos de 1º a 5º ano em uma periferia da zona sul de São Paulo.
“Sempre tivemos bom desempenho no Idesp e no Ideb, mas a gente não deslanchava”, comenta a diretora, que se aposentou em 2021 e hoje atua como formadora de professores. Mara começou a pesquisar e percebeu que escolas de tempo integral que trabalhavam com competências socioemocionais, com o mesmo contexto da Clorinda, tinham notas melhores. “Na mesma época, percebi uma turma que não lidava bem com frustração, então a meta não era só desempenho, mas sim, formação.”
A diretora começou inserindo na grade de aulas o Clorinda Legal, um encontro que se iniciava com um grito de guerra e trabalhava habilidades como a empatia e a resiliência. Ela e a coordenadora pedagógica faziam a formação da equipe pedagógica, pesquisando atividades colaborativas na internet e repassando aos professores, que depois as replicavam com suas turmas.
Mara também passou a organizar projetos com os alunos: sarau no recreio, jornal e rádio escolar, monitoria (os estudantes do 5º ano auxiliando os mais novos com dificuldades), contação de histórias e resgate de brincadeiras tradicionais. Por meio de um conselho mirim, as crianças participavam das decisões na escola e sugeriam os projetos que fariam a cada ano. Em 2019, a nota do Ideb foi 7 e a do Idesp, 6,89. “Sinto que foi um reflexo desse protagonismo, de eles entenderem o que faziam, agindo como cidadãos. As provas servem como um termômetro, mas o que me interessava de fato era o crescimento integral das crianças”, conta ela.
Simone André, especialista em Educação e design de Políticas Educacionais voltadas à inovação curricular e à formação de educadores, ressalta que a aprendizagem significativa é um dos principais ganhos quando se abraça a concepção de Educação Integral. Consultora deste Box, Simone destaca que a escola ensina muito mais do que conteúdos disciplinares. “Quanto mais intencionalmente ela ensinar a construir vínculos, a cuidar, a engajar, a conviver, a participar, a ter autonomia e a colaborar, mais profunda e significativa será a aprendizagem.”
Segundo a especialista, uma das três responsabilidades centrais do gestor escolar atualmente é conhecer e desenvolver na escola uma nova concepção de aprendizagem em que a dimensão socioemocional caminha lado a lado com a cognitiva, como propõe a BNCC. A segunda é conhecer o contexto da sua escola e dos estudantes para proporcionar um clima que incentive essa aprendizagem significativa.
Projetos transformam a dinâmica do ensino no Sertão baiano
No início da pandemia, a coordenadora pedagógica Mara Paulina saiu em busca de uma formação em competências socioemocionais e metodologias ativas e colocou docentes, turmas e até as famílias envolvidas na aprendizagem por projetos. “Solidariedade e empatia foi o que os professores mais desenvolveram no isolamento social. Todo mundo precisou se reinventar e se fortalecer e as competências socioemocionais, que tinham sido tema de fóruns e workshops e pareciam tão abstratas, foram incorporadas à prática de uma hora para outra”, conta Mara Paulina, que faz parte da equipe gestora da Escola Municipal Bento Freire de Souza, responsável por atender 650 alunos da Educação Infantil aos Anos Finais do Ensino Fundamental em Chorrochó (cidade baiana de pouco mais de 11 mil habitantes, na fronteira com Pernambuco). Ali, os professores levaram roteiros de estudos na casa das crianças que não tinham acesso à internet.
“Não é simples empreender uma mudança dentro de uma escola pública do Sertão com poucos recursos, mas conseguimos colocar o aluno no centro, como protagonista, e contar com a participação das famílias, que ficaram encantadas com o trabalho por projetos”, comemora.
No início da carreira, há quase 15 anos, Mara coordenou um programa de aceleração de aprendizagem para alunos com distorção idade-série, uma parceria da Secretaria de Educação de Chorrochó com o Instituto Ayrton Senna. Com essa experiência acumulada, ela já tinha conhecimento aprofundado sobre competências socioemocionais. Quando a escola fechou por causa da covid-19, a coordenadora procurou opções para desenvolver o ensino remoto emergencial.
Encontrou referências e instruções de área gratuita da plataforma Cloe e começou a orientar os professores a trabalharem com a Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP). Segundo Simone André, acompanhar os professores e apoiá-los para construírem boas estratégias de ensino é a terceira grande responsabilidade do gestor que busca a aprendizagem significativa e um ambiente escolar capaz de promover a formação integral dos estudantes.
“Bem no início da pandemia, colocamos os alunos do 4º ano para prepararem uma reportagem sobre o que estava acontecendo no município. Eles entrevistaram o prefeito, pessoas da comunidade e da área de saúde, e eles se saíram muito bem. O trabalho chegou a repercutir na tevê digital da localidade”, explica. Mara enviou o material feito na escola para a Cloe e conseguiu uma parceria, que garantiu acesso de professores e alunos à plataforma em 2020 e 2021. “Nos inspiramos nas expedições (como a Cloe chama as sequências de aprendizagem ativa) e adaptamos à nossa realidade. No São João, por exemplo, trabalhamos matemática com receitas de comidas típicas e o gênero textual paródia com elementos da cultura regional”, relembra.
Em Manaus, Educação Integral vai aonde a população mais precisa
Em março de 2020, a diretora Zilene Trovão teve de fechar as portas do recém-inaugurado Centro Integrado Municipal de Educação Prof. Dr. José Aldemir de Oliveira após 14 dias de ensino presencial. Localizado na parte leste de Manaus (AM), entre a zona urbana e a rural, o Cime atende cerca de 1,2 mil crianças, da Educação Infantil aos Anos Finais do Ensino Fundamental, em uma comunidade de alta vulnerabilidade social. “A escola tem estrutura de padrão internacional, com salas amplas, ar condicionado, mobília boa, jardim interno, elevador para cadeirante, biblioteca, laboratórios e quadras. Justamente no lugar que mais precisa”, descreve Zilene, que já trabalhou no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Hermann Gmeiner, a primeira pública de Educação infantil reconhecida como Escola Transformadora.
Desde o início, os sete Cimes de Manaus têm por base a Educação Integral e Democrática. Estimulada pela atuação do Coletivo Escola Família Amazonas (Cefa), a Secretaria Municipal de Educação de Manaus vem ampliando o uso de metodologias ativas de ensino e o currículo diversificado e flexível. “Trabalhar com essa concepção educativa é uma desconstrução para professores e alunos, para quem a gente dá liberdade com responsabilidade. Não tem fila, os meninos entram com músicas escolhidas pelas turmas do 6º ao 9º ano, não tem farda (uniforme)”, descreve a gestora.
Para priorizar a humanização da Educação, é preciso romper paradigmas, o que não é fácil. Zilene diz que é necessário sair da zona de conforto e da hierarquia tradicional, ser democrático e inclusivo, dar abertura para os professores e trabalhar de modo coletivo. Um dos desafios é comunicar e explicar as novas maneiras de ensinar e aprender para a comunidade escolar, outro é formar os professores para o trabalho interdisciplinar e as metodologias ativas, para dar autonomia aos alunos, além de orientar toda a equipe que trabalha na escola, do porteiro à merendeira, a atuar em favor da Educação.
“Os pais levam mais tempo para compreender, mas quando o professor e o aluno entendem, o resultado aparece rápido, em um ou dois meses.” Segundo Zilene, as crianças percebem a importância de estudar, de ter perspectiva, de trabalhar e ter qualidade de vida, graças ao trabalho pedagógico. “Com liberdade, todos começam a gostar e a entender o propósito de aprender. Alunos e professores começam a ter vez e voz, o que torna a escola muito viva.”
Saiba mais sobre os desafios da gestão escolar para instituir a Educação Integral, conheça ferramentas de engajamento e participação como a escuta ativa e uma forma de conduzir mudanças complexas nos próximos conteúdos deste Box.
Como os gestores podem deixar o conteudismo de lado e apoiar o desenvolvimento integral dos alunos
Formação de professores: Como estimular a equipe a pôr em prática a Educação Integral
Instrumento para baixar: Questionários para medir como sua escola está promovendo a escuta ativa
Para saber mais
Sites e publicações que são boas referências para gestores sobre Educação Integral
Caminhos para a Educação Integral
Material do Movimento pela Base e do Consed reúne princípios e orientações para a implementação da Educação Integral.
Educação Integral: Um conceito em busca de novos sentidos
No site do Cenpec, esse especial multimídia traz um histórico da educação integral no Brasil e possibilidades de aplicação nos territórios.
Centro de rreferências em Educação Integral
Promove a pesquisa, o desenvolvimento metodológico, o aprimoramento e a difusão gratuita de referências, estratégias e instrumentais que contribuam para o fortalecimento da agenda de Educação Integral no Brasil.
Plataforma Educação Integral na Prática
Para entender conceitos, princípios e estratégias da política de Educação Integral.
Escolas Transformadoras
As Escolas Transformadoras no Brasil são 21, localizadas nas cinco regiões do país.
Movimento de Inovação na Educação
Movimento integrador de redes, escolas, profissionais, ativistas e iniciativas sociais pela transformação da educação em seus diversos campos.
Currículo e Educação Integral na Prática: Uma referência para Estados e Municípios
Apoiar redes e escolas a construírem coletivamente seus documentos curriculares e práticas pedagógicas à luz da Educação Integral é o objetivo do material reunido nesta publicação, fruto de parceria entre o Centro de Referências em Educação Integral e o British Council.
Educação Integral: Experiências que transformam
Publicação do Itaú Social que reúne artigos e debates de um Seminário sobre o tema.
Competências Socioemocionais de Educadores – Seu papel central para uma concepção de educação integral
Para auxiliar a formação de professores, essa publicação do Instituto Ayrton Senna aborda competências socioemocionais e instrucionais relevantes para a prática docente e como elas podem ser conceituadas, organizadas e avaliadas.
Guia BNCC: Construindo um currículo de educação integral
Material do Instituto Ayrton Senna para gestores escolares e de educação utilizarem na articulação com a coordenação pedagógica e professores.
Educação Integral: Elementos necessários para o debate
Publicação da TV Escola com artigos sobre o tema.
Vivescer
Iniciativa do Instituto Península, é uma plataforma sobre desenvolvimento integral de professores, pois o tema não é só para crianças, mas também, para os adultos que trabalham com elas.
Cloe
Plataforma de aprendizagem ativa da Camino Education.
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