Para aprender sobre a prática

Existem mesmo “brincadeiras de menino” e “brincadeiras de menina”?

Na Educação Infantil e no ambiente familiar, as crianças são incentivadas a escolher brinquedos e atividades seguindo definições do que é ser homem ou mulher. Romper essa lógica é garantir experiências mais ricas para todos

Ilustração de crianças pequenas com brinquedos nas mãos. O menino segura uma boneca enquanto a menina segura uma bola.
Ilustração: Renata Miwa/NOVA ESCOLA

Quando uma turma de crianças de 4 anos de idade da CMEI Deusdete Lêdo David, em Aparecida de Goiânia (GO), foi fazer um passeio, surpreendeu-se ao perceber que quem as levaria até o teatro seria uma motorista mulher. Algumas crianças chegaram a perguntar se não era um homem que deveria estar dirigindo o ônibus, e na volta o professor Clemerson Elder Trindade Ramos organizou uma roda de conversa para explicar que não existe profissão de homem e de mulher e que o importante é trabalhar com zelo, competência e ética. A turma percebeu que aquela mulher sabia dirigir, havia sido respeitosa e levado a todos em segurança - logo, podia ser motorista.

Clemerson é formador e professor de Educação Infantil, e diz perceber na pele como a estrutura de gênero na qual toda a sociedade está inserida perpetua as definições do que é tido como masculinidade ou feminilidade. “A sociedade olha para a Educação das crianças e diz que quem tem que ser professor são as mulheres, pois elas são carinhosas. Mas isso não é uma característica de mulher ou de homem, mas dos seres humanos”, defende ele. “Na Educação Infantil isso demarca o que é de menina e o que é de menino. Assim, as crianças perdem o direito de explorar o mundo e de viver experiências as quais têm direito e interesse.” Ou seja, se só homens forem socialmente incentivados a ser motoristas, consequentemente as meninas não serão incentivadas a brincar de carrinho e, assim, perdem a oportunidade de explorar as possibilidades dessa experiência.

Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), todas as crianças devem ter direito a uma série de experiências que contribuam para o seu desenvolvimento e aprendizagem, mas, na prática, diversas regras impõem o que elas podem ou não fazer de acordo com seu sexo biológico. “A cultura vai estabelecendo e impondo padrões, os scripts de gênero, que são sociais, culturais e também históricos. Então precisamos entender isso como algo construído, não da natureza do sujeito. E, muitas vezes, esses padrões são tão sutis e bem amarrados que nem percebemos”, diz Jane Felipe, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero. Segundo ela, desde antes do nascimento os espaços, as cores e os objetos planejados e oferecidos para as crianças pelas famílias são considerados segundo o gênero, o que muitas vezes é reproduzido pela escola. Já na infância, as mulheres são incentivadas à domesticidade, à maternidade e ao embelezamento. Por outro lado, os homens são educados a se aventurar e experimentar mais atividades fora do ambiente da casa.

O professor Clemerson conta que já presenciou situações em que meninas decidiram jogar futebol com os meninos e foram repreendidas pelo professor porque poderiam se machucar, já que são vistas como seres frágeis. Segundo ele, a criança aprende brincando e o professor precisa compreender que, independentemente de ser menino ou menina, ela está participando daquela brincadeira na condição de criança. “O professor deve oferecer um espaço para todos brincarem, explorarem e pesquisarem o tempo todo e com tudo que for possível. Sua função não é garantir que uma ideia de feminilidade ou masculinidade seja afirmada”, explica Clemerson

Em alguns casos, as crianças podem tomar uma atitude questionável, como dizer que o colega não pode participar de uma brincadeira por ser menino ou menina, mas isso não é algo natural ou que deva ser ignorado pelo professor. É importante que elas estabeleçam laços e saibam interagir com todos, não só com os melhores amigos. Por isso, a escola precisa promover intencionalmente essa interação. Às vezes, a afinidade pode sim ser um critério de escolha e divisão de grupos, mas é preciso que o docente invista em estratégias para dividir a turma aleatoriamente. “Não é verdade que menina só brinca com menina e menino com menino. Em geral, isso é incentivado pela família, pela escola, mas não é natural. O mais importante é que essas crianças aprendam a trabalhar e se relacionar de forma cooperativa, independente do gênero", diz Jane Felipe. Para fazer isso de modo simples, durante jogos e brincadeiras, o professor pode fazer um sorteio de cores ou desenhos para separar grupos - e sempre formá-los misturando meninos e meninas.

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