Dos dois lados do Atlântico: dicas para trabalhar as culturas africana e indígena
Conheça uma seleção de autores e histórias que vão aproximar seus alunos de duas importantes matrizes do nosso folclore: a africana e a indígena
As leis nº 10.639 e nº 11.645, que em 2003 e 2008 instituíram a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena, respectivamente, criaram um rico movimento na educação brasileira de se debruçar sobre as próprias raízes.
Na esteira da nova legislação, e do interesse crescente de professores e do público em geral, surgiram centenas de obras literárias e audiovisuais, além de estudos acadêmicos, sobre diversos aspectos dessas duas grandes vertentes formadoras do povo brasileiro. Que, por sua vez, também são multifacetadas, já que se trata de centenas de etnias diferentes; tanto dos povos trazidos da África quanto dos que já viviam aqui antes da chegada da terceira grande matriz formadora da cultura brasileira, a europeia.
Veja a seguir uma seleção de obras que trazem mitos, histórias e lendas com origem nos dois lados do Atlântico Sul: África e as terras de muitos povos indígenas que, um dia, se chamaria Brasil.
1. Os Recontos de Ilan Brenman
Nascido em Israel, filho de polonês com argentina, e brasileiro desde os 6 anos de idade, o escritor Ilan Brenman sempre foi fascinado por histórias, tanto que trabalhou como contador de histórias antes de começar a escrevê-las. Dele há uma antologia de contos africanos que pode ser uma boa introdução à literatura oral produzida em diversos cantos do continente: Contador de Histórias de Bolso: África (Moderna, 2008). Ilustrado por Fernando Vilela, tem contos selecionados do Senegal, da Tanzânia, de Camarões e da África Ocidental. O livro traz apólogos curtos e bem-humorados, como “A história mais curta da África”, onde um diálogo entre uma águia e uma coruja evidencia a visão deturpada que os pais têm dos próprios filhos. Ilan publicou um segundo volume de histórias de origem africana, Amizade Eterna e Outras Vozes da África (Moderna, 2016). Dessa vez tendo como parceira na ilustração Catarina Bessell, o livro traz histórias repletas de magia, como o conto-título, de origem egípcia, ou “A pele da imortalidade”, reconto de uma lenda senegalesa.
Ilan também pesquisou histórias da tradição oral da Índia, os três editados pela Brinque-Book (As 14 Pérolas da Índia, 2008), de pensadores budistas (As 14 Pérolas Budistas, 2010) e dos sufis (As 14 Pérolas da Sabedoria Sufi, 2013), caso queira levar seus alunos para outros territórios da cultura popular.
2. Reginaldo Prandi: África e Amazônia
Sociólogo e escritor com produção extensa voltada ao folclore e à religiosidade africana e indígena, Reginaldo Prandi em Contos e Lendas da Amazônia (Companhia das Letras, 2011) traz 25 relatos de mitos sobre a origem dos homens, dos bichos e das plantas provenientes de diversas etnias. Dividindo seu olhar entre a floresta, os bichos e o homem que vive nela, as histórias são mitos de criação (das estrelas, dos rios, da lua, dos animais, das plantas), especulações metafísicas que, ao longo de séculos, moldaram um tipo de mitologia amazônica. No fim do volume, Prandi faz um retrato sintético da região a partir desses três elementos (a floresta, o rio e o homem) que estão na origem dos contos selecionados.
O mesmo percurso de buscar os mitos de origem o autor realizou com o livro Contos e Lendas Afro-brasileiros: A criação do mundo (Companhia das Letras, 2008). Aqui, Reginaldo Prandi traz uma série de histórias de origem que chegam até o leitor por meio dos sonhos de Adetutu, jovem mãe africana aprisionada e escravizada e que está sendo transportada para o Brasil em um navio negreiro. Durante a viagem, Adetutu sonha e se reconecta com as histórias de seu povo contadas pelos orixás.
3. Enciclopédia Negra na Pinacoteca
Elaborada por dois pesquisadores universitários com grande experiência e muito respeitados por seus estudos, Lílian Schwarcz e Flávio Gomes, a Enciclopédia Negra (Companhia das Letras, 2021) traz biografias de mais de 550 personalidades negras, distribuídos em 416 verbetes individuais ou coletivos. Surge com a intenção de se tornar uma obra de referência para futuros estudos sobre personalidades que sofreram diversas formas de apagamento ou sobre as quais há pouco registro. Os organizadores da obra convidaram 36 artistas plásticos para retratarem muitos desses personagens perdidos pela história, resultando em 103 retratos.
A Pinacoteca do Estado de São Paulo, que reabriu suas exposições com restrições quanto ao número de visitantes, está com uma exposição relacionada a esse trabalho, com as 103 obras de arte originais, dividido em seis eixos temáticos: Rebeldes; Personagens atlânticos; Protagonistas negras; Artes e ofícios; Projetos de Liberdade; Religiosidades e ancestralidades. A exposição tem duração prevista até 8 de novembro de 2021 e os ingressos gratuitos podem ser obtidos em http://pinacoteca.org.br/ingressos-e-releases/. Com as devidas precauções e seguindo rigorosamente os protocolos de segurança, uma ida ao museu pode representar uma opção renovadora às salas virtuais.
4. Luís da Câmara Cascudo, sempre
O mais importante pesquisador do folclore brasileiro buscou, ao longo de sua vida, dar visibilidade às histórias da tradição oral. Algumas que se relacionam diretamente aos mitos indígenas são: Lendas Brasileiras (Global, 2001) e Contos Tradicionais do Brasil (Global, 2003).
Câmara Cascudo também se interessou muito pelas tradições culinárias, e além de ter escrito livros sobre a cachaça e o açúcar, publicou, em 1964, Cozinha Africana no Brasil, em que aprofunda essa vertente tão saborosa do folclore. Sua empreitada ganharia ainda mais fôlego com os dois volumes de História da Alimentação no Brasil (Global, 2010-2011), lançados em 1967 e 1968. Pesquisar a origem de muitos alimentos e tradições culinárias conhecidas pelas famílias dos seus alunos é outra forma de digerir as influências com que cozinheiros africanos e indígenas anônimos temperaram nosso folclore. E pode ser, literalmente, uma aula de dar água na boca.
5. O Saci, um Mito Sintético
O personagem mais famoso do folclore brasileiro, o menino negro de uma perna só que gosta de aprontar diabruras com as pessoas, é ele próprio um exemplo das dinâmicas, muitas vezes insondáveis, das histórias de tradição oral e popular. Há relatos que mostrariam a origem do mito no continente sul-americano. Outros que fariam supor que o saci tenha nascido na África e veio ao Brasil no bojo de muitas outras histórias e tradições dos principais povos transportados à força para cá. Para complicar ainda mais a arqueologia do mito de uma perna só, há histórias europeias que também se assemelham a ela, como revela Januária Cristina Alves, autora também de O Saci-Pererê e Outras Figuras Traquinas do Folclore Brasileiro (FTD, 2017): “Há uma história portuguesa do fradinho da mão furada, que gostava de brincar com o fogo em brasa passando de uma mão para a outra até que teve a mão furada. O que se supõe é que essa história possa ter chegado ao Brasil antes de circularem as versões indígenas da lenda do saci. Ele também é muito traquinas, mas não tem um pé só, tem os dois. A própria figura do diabinho é bastante presente em muitos lugares do mundo”, relata.
Para ela, o saci traz uma característica interessante do nosso folclore, que seria o não dualismo. “Ele é um personagem traquinas, que apronta com as pessoas, mas não é mau, no sentido “vilão da Disney”. O Pedro Malasartes também é assim, não é preto no branco, tem nuances. Ou o lobisomem, que não é assim porque quer, mas sofre de uma sina. Ou a mula sem cabeça… São questões de uma sutileza, em termos de narrativa, que merecem ser mais bem exploradas”, recomenda.
Outra opção, além do clássico livro de Monteiro Lobato que inaugurou a série, é Saci – A origem (Companhia das Letrinhas, 2016), livro de Ilan Brenman que especula sobre o surgimento desse mito, tão disseminado quanto misterioso. E importante, a ponto de ganhar um dia só dele no calendário brasileiro: 31 de outubro. Quando em outros países se comemora o Dia das Bruxas, por aqui há um esforço de muitos educadores para transformarem as importadas festas de Halloween no brasileiríssimo Dia do Saci.
6. Mitos Americanos: Uma Saga
Para quem gosta de uma saga, a escritora Simone Saueressig tem dois livros voltados ao público juvenil que compõem um belo panorama dos mitos de origem do continente americano relacionados ao sol. Em O Nalladigua: Os Sóis da América (Editora dos autores e Amazon, para kindle), um garoto chamado Pelume parte da Patagônia e vai até o norte da América do Norte em busca de histórias sobre o nascer do sol. Ele quer entender por que na terra dele o sol parou de nascer. E assim, a autora vai apresentando os mitos dos povos das Américas relacionados ao sol. É uma obra de ficção inspirada em mitos que o pesquisador Andriolli Costa comenta ser uma “verdadeira aula de ficção folclórica”.
7. Uma Aventura pelo Folclore
Voltado para crianças do Ensino Fundamental 1, Felipe Castilho publicou Ouro, Fogo e Megabytes: O legado folclórico (Gutenberg Autêntica, 2012), livro de aventura bem divertido, protagonizado por um menino negro que adora videogames e por meio dos jogos de computador começa a se envolver com pessoas vinculadas a personagens do folclore. Com isso, ele sairá dos jogos de computador para explorar o mundo real dos seres irreais.
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