Para saber ainda mais

Educação antirracista: 5 perguntas e respostas sobre a Lei nº 10.639

Sancionada em 2003, o texto introduziu mudanças na LDB e tornou obrigatório o ensino de História da África, culturas afro-brasileira e indígena

Quase 20 anos depois, uma educação antirracista de fato ainda é desafio. Flávia Borges/NOVA ESCOLA

Em 2003, o Brasil deu um passo fundamental para a construção de uma educação antirracista. Naquele ano, foi sancionada a Lei nº 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e tornou obrigatória a presença de história da África, cultura afro-brasileira e indígena no currículo oficial das redes pública e particular de ensino.

Desde então, escolas e professores procuram se adequar e o tema ganhou espaço de pesquisa também nas universidades. A mesma lei instituiu o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, fazendo com que o tema entrasse de vez para o calendário de eventos e atividades escolares. 

No entanto, quais foram os avanços de fato? Como a comunidade escolar pode superar os desafios que ainda existem para que meninas e meninos possam ter uma educação antirracista em todas as dimensões necessárias?

Leia, abaixo, algumas respostas para dúvidas comuns sobre o tema:

O que é a Lei nº 10.639? 

A Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, altera a LDB, incluindo no currículo oficial o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas, resultado de anos de luta do movimento negro organizado. No primeiro parágrafo, o texto afirma que o conteúdo programático deve tratar da luta dos negros no Brasil, da cultura negra e da formação da sociedade brasileira, "resgatando a contribuição dos povos negros nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil".

Onde estão as regras para a aplicação da Lei nº 10.639?

Mesmo sancionada, a Lei nº 10.639 necessitava de um conjunto de regras para que pudesse ser efetivamente aplicada. Para isso, em março de 2004, um parecer foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão ligado ao Ministério da Educação. Menos conhecido que a Lei nº 10.639, este documento criou as diretrizes para a aplicação da então nova legislação (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana).

A relatora do documento foi a professora gaúcha Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, indicada em 2002 pelo movimento negro para uma das vagas no Conselho Nacional de Educação (CNE) e única pessoa negra do Conselho à época.

Todo o detalhamento do que é estabelecido pela lei está no documento das diretrizes e é nele que escolas, gestores e professores podem obter orientações, princípios e fundamentos para o planejamento e execução do conteúdo sobre história e da cultura afro-brasileira e africana.

O documento destaca que não se trata de trocar o etnocentrismo europeu por um africano, mas de ampliar os currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica da sociedade brasileira. Desse modo, as Diretrizes apresentam o embasamento teórico e prático que auxiliam os educadores na concepção e execução de uma educação mais igualitária e diversa.

Para Petronilha, o ensino da cultura afro-brasileira tem o objetivo de mostrar que a história e a cultura dos povos indígenas e negros nos ajudam a desconstruir a ideia de que existe um povo principal ou que contribuiu mais: “A Europa e os Estados Unidos acham-se o centro do mundo. Não vejo nada de errado nisso, mas é um problema o mundo aceitar que eles sejam o centro”. A professora defende que todos nós nos vejamos como centro. “As pessoas pensam que tudo que é bom, certo e humano, está na Europa. E nós não teríamos cultura, história, jeito de ser e estudar com a mesma qualidade”, defende. Ainda segundo a educadora, o combate ao racismo precisa começar nas famílias. Porém, se isso não acontece, que ele comece na escola.

Em qual aula trabalhar os conteúdos determinados pela lei? 

A BNCC para o Ensino Fundamental conta com quase 20 habilidades ligadas à história e cultura da África, dos povos africanos e cultura afro-brasileira, todas em História. Então, em termos curriculares, é nas aulas desse componente curriculares que se dão as melhores oportunidades para desconstruir estereótipos e avançar numa educação antirracista.

“O primeiro passo é descolonizar o pensamento, situando a História do Brasil dentro do projeto colonial, realocando os sujeitos dentro deste processo”, explica a historiadora Sherol dos Santos, do Time de Autores de NOVA ESCOLA. Isso inclui lembrar que tanto os povos nativos americanos quanto os africanos possuíam trajetórias independentes e muitas vezes mais antigas do que a dos europeus. “Pautar a história do território brasileiro a partir apenas da lógica europeia é a expressão máxima da vitória do pensamento racista”, define.

No entanto, uma educação antirracista precisa extrapolar os limites curriculares e permear toda a aprendizagem. Para Sherol, em qualquer disciplina é necessário que o professor compreenda como a sua área de conhecimento foi construída e os impactos da colonização naquilo que está sendo apresentado como conhecimento científico validado. O professor de Biologia, por exemplo, não deve explicar a catalogação e identificação de espécies de plantas ignorando que, antes dos compêndios de botânica, esses saberes já estavam disponíveis e circulando entre os povos nativos. “É preciso mostrar que esse conhecimento não é menos válido porque não foi escrito, ou o conteúdo estará sendo abordado dentro de uma perspectiva colonizada, desrespeitando o principal pilar do artigo 26-A da LDB: educar para as relações étnico-raciais e para o reconhecimento da diversidade”, explica.

Quais os principais desafios para o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas?

O historiador Carlos da Silva Jr. é uma das principais vozes da atualidade quando o assunto é o resgate do patrimônio e da história afro-brasileiros. Para ele, é urgente promover uma educação antirracista que coloque a história e a cultura afro-brasileiras em igualdade com qualquer outra história e cultura dos diversos povos.

Ele reconhece que a Lei nº 10.639 trouxe um avanço institucional fundamental, mas ainda há desafios, como a dificuldade de transpor da dimensão legal para os livros didáticos. “As mudanças que acontecem na produção do conhecimento histórico são mais rápidas que o processo de chegada nos livros didáticos. A gente já está em outro ponto dos nossos trabalhos historiográficos, enquanto os livros didáticos ainda, em alguma medida, continuam a reproduzir certas falácias ou visões preconceituosas”, reflete. “Este é um primeiro desafio, construir mecanismos para que a lei de fato consiga se consolidar, justamente porque a gente tem a dificuldade de levar com rapidez o que é produzido na academia para a sala de aula.”

O outro desafio levantado por Carlos da Silva Jr. é que a história da África ainda é um campo de estudo recente, constituído basicamente nos anos 2000, ao mesmo tempo que a lei foi criada. O resultado prático disso é que as culturas africanas, afro-brasileira e indígenas ainda são colocadas  no território do folclórico, uma espécie de cultura menor. “Há um aspecto cultural que é levado à dimensão do exótico. Há o grande desafio de desmitificar a ideia de que essas tradições devem ser vistas como folclore”, conclui Carlos.

A lei é uma obrigatoriedade em todos os componentes curriculares?

É consenso entre especialistas que uma educação plenamente antirracista é global, sem se limitar ao conteúdo das aulas de História ou ao que determina o texto legal. Ainda assim, o próprio cumprimento da letra da lei pode ser desafiador. “É importante destacar que estamos falando em cumprir a LDB, ou seja, não é opinião nem opção: todo docente precisa cumprir, buscar qualificação e fazer as alterações necessárias nas suas estratégias pedagógicas”, afirma Sherol. Como já foi dito anteriormente, a Lei nº 10.639 alterou o artigo 26-A da LDB, e, por esta razão, tem o mesmo peso que o cumprimento dos dias letivos, por exemplo. “Destaco isso porque muitos professores insistem em ignorar a lei, como se esta fosse perfumaria”, critica a consultora.

Janine Rodrigues, educadora e fundadora da Piraporiando, editora infantojuvenil focada na diversidade, acredita que, mesmo quando muito bem-intencionados, nem sempre os educadores têm as ferramentas necessárias para extrapolar o currículo e levar uma educação antirracista. “Fica a cargo de o professor resolver o tema sozinho. Aí ele propõe um trabalho, uma apresentação de música – que são ações relevantes. Mas educação antirracista é dia a dia”, explica. Para ela, apenas atividades soltas não darão conta da questão e o professor precisa de suporte. “Temos uma lei, ela é ampla, é uma boa estrutura. Mas o professor recebeu suporte para fazer um trabalho de qualidade? Os professores precisam de formação”, conclui.

Mais sobre esse tema