A hora da escuta
As assembleias de classe, onde os alunos têm vez e voz, podem provocar uma pequena revolução democrática na sala de aula, na escola e até numa cidade inteira
No fundo da sala, há duas latas. Em uma está escrito “eu critico”, na outra “eu felicito”. Ao lado das latas, que em outra classe podem ser potes de sorvete vazios com uma fenda na tampa, em outras ainda caixas de sapatos em forma de urna, há também um pote com papéis em branco, para serem usados pelas crianças e jovens a qualquer momento em que queiram se manifestar. A cada semana, o professor ou professora cuidará de montar uma pauta para a assembleia de classe, na qual estarão contempladas tanto as críticas quanto as felicitações. Aquelas virão primeiro do que estas, até para que os elogios permitam que a assembleia se encerre com uma memória mais favorável para seus participantes. Nada mais humano: ninguém gosta de receber críticas, mesmo que, muitas vezes, elas sejam justas e necessárias.
Mesmo que ouvir críticas seja difícil, é possível aprender a ouvi-las. E isso pode ser ensinado pela escola, por meio da adoção de uma metodologia específica que visa melhorar o convívio na escola. Ela se apoia na criação de assembleias de classe e assembleias docentes, e é nutrida por materiais didáticos e paradidáticos especialmente desenvolvidos pelo Grupo de Estudos em Educação Moral (Gepem), que reúne pesquisadores da Unesp e da Unicamp.
De uma escola para toda a cidade
O que vale para uma classe, ou uma escola, também vale para uma cidade inteira. Em Artur Nogueira, município do interior de São Paulo, a iniciativa de uma diretora em 2012, que contou com o apoio de uma professora de sua escola que participava do Gepem e foi premiada com o Prêmio Educador Nota 10, expandiu-se para se tornar uma ação envolvendo toda a rede municipal em oficinas de formação de agentes multiplicadores da metodologia. E, melhor, com vistas a se tornar política pública, por meio de sua inclusão no Plano Municipal de Educação, conforme destaca a secretária de Educação de Artur Nogueira, Elaine Boer: “Conseguimos colocar esse projeto, que se chama ‘Leitura na escola: convivência ética e cidadania’, nos PPPs das escolas neste ano. Agora, precisamos fazer conferências em 2020 para que o programa seja inserido no Plano Municipal de Educação”, planeja.
O início, em 2012
Tudo começou com uma série de interrupções na vida de uma diretora e sua vice, e uma feliz coincidência. O lugar foi a EMEF Francisco Cardona, em Artur Nogueira (SP), que em 2012 era dirigida pela professora Débora Sacilotto. Ela conta como tudo começou: “Eu e a então vice-diretora levamos para a hora de planejamento pedagógico dos professores uma questão que estava nos incomodando: a frequência com que éramos interrompidas para resolver conflitos entre os alunos. Ariane Tagliaferro, que na época era professora do 1º ano e havia feito estágio na Escola Comunitária de Campinas, onde viu as assembleias de classe funcionando, trouxe então essa proposta na reunião. Ela também me apresentou o livro sobre esse tema escrito por um professor dela, Ulisses Araújo [Assembleias Escolares: Um caminho para a resolução de conflitos, Ed. Moderna, 2004]. Comecei a assistir alguns vídeos das assembleias que aconteciam nessa escola comunitária, li o livro que a professora Ariane trouxe, e aí me encantei”, relata Débora, que naquele ano inscreveu a iniciativa no Prêmio Educador Nota 10.
Ariane Tagliaferro, a professora que integrava o Gepem, viu na demanda da diretora a oportunidade de colocar em prática o que havia aprendido em teoria. Assim, ajudou os gestores, preparando os seus colegas para a adoção desse mecanismo que, em essência, criaria um canal democrático de discussão entre os integrantes de cada classe na escola. E, na sequência, assembleias de docentes, seguindo a mesma sistemática “eu critico”/“eu felicito”.
Atualmente lecionando na EMEF Alcídia T. W. Matheis, no mesmo município, Ariane continuou com a prática das assembleias de classe e, a partir de 2017, ajudou a implantar a metodologia nas demais escolas de Artur Nogueira. Ela relata como conduz a assembleia de classe, que agora é aguardada com ansiedade pelos alunos: “No dia combinado, eu pego as críticas e vou discutir o que aconteceu, não a pessoa envolvida. Assim, se está escrito ‘não gostei que meu colega falou um palavrão pra mim’, eu não vou discutir quem falou, mas sim, o ato de xingar alguém com um palavrão, o que a pessoa que ouviu sentiu, e como podemos resolver essa situação. Vale o mesmo para a ação de cortar uma fila, onde se discute o ato de se furar fila. E a resolução não vem de mim, vem da assembleia, nasce do coletivo”, ressalta, com a autoridade de quem há oito anos incorporou a prática das assembleias em suas turmas de alfabetização. E não tem do que reclamar; nem seus alunos. Ou melhor, estes, se tiverem alguma reclamação, têm espaço garantido de escuta e acolhimento.
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