Para transformar a escola

Literatura: como trabalhar livros de autoras e autores negros o ano todo

Explorar em Língua Portuguesa as obras desses escritores favorece a representatividade e ajuda a compreender a formação social do Brasil

Saiba como trabalhar a literatura negra em cada um dos anos do Ensino Fundamental 1. Ilustração: Ana Cardoso/NOVA ESCOLA

A luta de resistência dos afrodescendentes no Brasil desde o século 16 produziu uma literatura negra de excelência, bem como frutificou a organização de um movimento negro incansável na busca por direitos e contra o racismo. 

Embora a difusão da obra de autores negros esteja longe do ideal, nos últimos anos muitos livros produzidos por eles - e que conversam com a temática racial - foram publicados no Brasil ou resgatados do esquecimento. Na lista de best sellers da Publishnews de 2020, há duas mulheres negras em destaque: a autobiografia da ex-primeira dama dos Estados Unidos, Michelle Obama (Minha História, Objetiva, 464 págs., R$ 69,90), é a sexta obra mais vendida na categoria não ficção. Em seguida, há o livro Pequeno Manual Antirracista (Cia. das Letras, 136 págs., R$ 24,90), da filósofa brasileira Djamila Ribeiro.

No entanto, o cardápio disponível para os professores e alunos brasileiros segue desigual: entre 2004 e 2014 somente 2,5% dos autores publicados no mercado editorial brasileiro eram não brancos. 

No mesmo período, só 6,9% dos personagens nas histórias eram negros. Entre os protagonistas, a porcentagem é ainda menor: 4,5%. Outro dado: entre 1990 e 2004, as ocupações mais comuns dos personagens literários negros eram: bandido, empregado, escravo e dona de casa. O levantamento faz parte de uma pesquisa coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB). 

Graças a seu poder expressivo, a literatura pode permitir um acesso a diferentes perspectivas sociais, mais rico do que aquele que é oferecido, por exemplo, pelo discurso político em sentido estrito. Personagens negras, assim, talvez ajudem leitores brancos a entender melhor o que é ser negro no Brasil – e o que significa ser branco em uma sociedade racista.


Trecho da pesquisa Entre Silêncios e Estereótipos: Relações raciais na literatura brasileira contemporânea, de Regina Dalcastagnè. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/9620 (acesso em 25/11/2020). 


Aliás, nesta série especial, você poderá conferir caminhos e listas de livros de autores negros para abordar no Ensino Fundamental 1, mas também no Fundamental 2 e até na Educação Infantil.

Antirracismo em foco 

Pesquisadora do processo de alfabetização no Brasil, em Moçambique e em Angola (onde lecionou em uma escola de ensino primário), a professora Sheila Perina acredita na eficácia em levar a discussão sobre o racismo para as aulas com o apoio de uma literatura adequada. “É muito importante [promover] a Educação antirracista desde a Educação Infantil, para negros e brancos, o ano todo na escola, e não apenas no mês de novembro”, ensina Sheila. 

Sheila também defende que nas aulas de Língua Portuguesa seja destacada a postura de contraponto ao eurocentrismo - isto é, a centralidade e valorização desproporcional de autores brancos ou europeus - na literatura. “O Brasil é negro. A literatura do Brasil é negra. Não aceito uma gavetinha para nós dentro da literatura do país. Somos a própria literatura do país”, defende a professora.

A força da Pedagoginga 

A escritora e filósofa Sueli Carneiro, criadora do Geledés, Instituto da Mulher Negra, chama de epistemicídio a negação ou o ocultamento das contribuições do continente africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade. E esse apagamento se reproduz na escola.

Para combater o epistemicídio, descrito por Sueli Carneiro, e promover a conexão entre a escola e o conhecimento ancestral, o escritor e historiador  Allan da Rosa desenvolveu o conceito da Pedagoginga.

O conjunto de propostas educacionais da Pedagoginga, sistematizadas no livro Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem (Ed. Pólen, 240 págs., 49,90), é adequado para a faixa etária  dos 7 aos 11 anos de idade, durante os anos iniciais do Ensino Fundamental. “A gente teme que a ideia de ancestralidade e de negritude com as nossas crianças seja mal acessada. E pior do que não dizer é trazer a ideia de mestiçagem, harmonia e plenitude como se não tivéssemos conflitos seriíssimos que entram dentro do peito, entram dentro da orelha, do presente e do futuro de qualquer criança”, disse o escritor.

Allan ressalta, porém, que a aula não deve perder a característica principal de acolhimento e escuta dos alunos. O professor tem a disposição, nas palavras de Allan, “um jardim de livros” e muitos recursos didáticos para falar de um assunto sério e complexo. “Não se pode colocar no ombro das crianças uma pedra, um peso de quilombolazinho, que pode fazê-la se distanciar, porque às vezes ela só quer respirar e brincar”, reflete o autor.

Cabe, então, ao professor ter a sensibilidade para conduzir a leitura de obras sobre temas relacionados a questões delicadas como o racismo. “Esse é o bailado delicado, mas muito frutífero, que é gingar entre a afirmação dessa luta e a afirmação desse gozo de viver quando não se está lutando. Esse é o desafio”, disse.


Como abordar a Literatura Negra do 1º ao 5º ano 


1º ANO

Temas possíveis: Ancestralidade e a história de reis e rainhas africanos 

Como trabalhar: Para as turmas do 1º ano, a cultura ancestral do povo negro pode ser apresentada de forma lúdica, por exemplo, falando do elemento água, das folhas, da argila e a presença desses temas na vida das pessoas negras e suas histórias, propõe Allan.

Para a professora Sheila, é válido também que se inclua a história de reis/rainhas africanos como a história de Nzinga, uma estratégia para  que novos mundos sejam apresentados em contraposição ao eurocêntrico.

Na BNCC:

EF15LP15 - Reconhecer que os textos literários fazem parte do mundo do imaginário e apresentam uma dimensão lúdica, de encantamento, valorizando-os em sua diversidade cultural como patrimônio artístico da humanidade.


2º ano do Ensino Fundamental  

Temas possíveis: Territórios, fábulas e a literatura oral produzida na África

Como trabalhar: A leitura e a confecção de mapas na faixa etária dos alunos do 2º ano (cerca de 8 anos) pode ajudar a entender os territórios e o modo de vida da população negra, no passado e nos dias atuais. 

Para Allan, a criança pode começar pela identificação dos territórios (times de várzea, escolas de samba, rodas de capoeira, jangada, quilombos etc.) e suas relações com a ancestralidade negra.

Como nessa fase a  presença das fábulas é muito presente nas práticas em sala de aula, é indicada  a imersão na literatura oral produzida no continente africano, que traz para os contos as diferentes concepções de mundo das etnias africanas. 

Na BNCC:

EF02LP26 - Ler e compreender, com certa autonomia, textos literários, de gêneros variados, desenvolvendo o gosto pela leitura.

Dica de livro: Um bom exemplo é o livro Ithale - Fábulas de Moçambique (Editora de Cultura, 48 págs., R$ 45), de Artinésio Widnesse, lançado em 2019.


3º ANO 

Temas possíveis: Lutas dos povos negros no Brasil e literatura infantil produzida em países lusófonos.

Como trabalhar: Os livros escolhidos podem falar das lutas do povo negro no Brasil, que giram em três eixos, segundo Allan da Rosa. São eles: a luta pela afirmação da humanidade dos negros, a luta contra o cativeiro e a luta por direitos (muitas vezes por direitos básicos), que se apresentam em diferentes épocas e diferentes contextos históricos.

Outra estratégia, segundo Sheila Perina,  é apresentar aos alunos a literatura infantil produzida nos países cuja língua portuguesa é o idioma oficial. Uma oportunidade para compreender as influências das línguas africanas no português brasileiro e também no português falado em África.

Na BNCC: 

EF35LP02 - Selecionar livros da biblioteca e/ou do cantinho de leitura da sala de aula e/ou disponíveis em meios digitais para leitura individual, justificando a escolha e compartilhando com os colegas sua opinião, após a leitura.

EF03HI03 - Identificar e comparar pontos de vista em relação a eventos significativos do local em que vive, aspectos relacionados a condições sociais e à presença de diferentes grupos sociais e culturais, com especial destaque para as culturas africanas, indígenas e de migrantes.


4º ANO

Temas possíveis: História do povo negro no Brasil 

Como trabalhar: Como o estudo da história do Brasil torna-se mais  sistematizado para crianças do 4º ano, a professora Sheila sugere que é o momento de investir em obras literárias que tratam da história do negro no Brasil. Para aumentar o interesse dos alunos, o professor pode retomar a confecção de mapas, para falar sobre o modelo de expansão das cidades, sobre as teorias de higienização e embranquecimento dos territórios, aconselha Allan.

Na BNCC: 

EF35LP02 - Selecionar livros da biblioteca e/ou do cantinho de leitura da sala de aula e/ou disponíveis em meios digitais para leitura individual, justificando a escolha e compartilhando com os colegas sua opinião, após a leitura.

EF04HI10 - Analisar diferentes fluxos populacionais e suas contribuições para a formação da sociedade brasileira.

Dica de livro: Livros produzidos por membros do movimento negro são bem-vindos, como a obra Luana - As sementes de Zumbi (FTD, 48 págs., R$ 50), produzido por Oswaldo Faustino e Aroldo Azevedo.


5º ANO

Temas: Contribuições da população negra para o Brasil 

Como trabalhar: Os livros escolhidos podem falar sobre as contribuições dos negros para o Brasil. Voltando à ideia do uso de elementos simbólicos com a argila, para falar sobre as mãos que construíram as cidades e o progresso. Ou as folhas como exemplo de conhecimento ancestral e relação do homem com o meio ambiente.

Na BNCC:

EF05HI04 - Associar a noção de cidadania com os princípios de respeito à diversidade, à pluralidade e aos direitos humanos.

EF05HI05 - Associar o conceito de cidadania à conquista de direitos dos povos e das sociedades, compreendendo-o como conquista histórica.

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