“Projeto de vida nada mais é do que a escolha de como eu quero viver”
Para a psicóloga e educadora Valéria Arantes, é preciso valorizar os desejos dos jovens e estimular a reflexão sobre projeto de vida desde cedo
Foi em 2008, com os primeiros estudos sobre a “geração nem-nem” - jovens que não estudam ou trabalham - que a psicóloga e educadora, docente da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Valéria Arantes, passou a pesquisar sobre projeto de vida.
Hoje, uma das principais especialistas brasileiras no assunto, com passagens por universidades internacionais e autora de diversos livros sobre a temática, Valéria defende que apenas a valorização do desejo dos adolescentes, visto como algo global e coeso, é capaz de guiar os jovens a se conectarem a seus objetivos e se manterem determinados na busca por eles. “Daí a importância de oferecer oportunidades que permitam a reflexão sobre o que há de mais fundamental no sujeito, que são seus desejos, suas aspirações e motivações. E temos que ser criativos para investir nessa empreitada. Projeto de vida nada mais é do que a escolha de como eu quero viver”, afirma.
Confira os principais trechos da entrevista que a pesquisadora Valéria Arantes concedeu a NOVA ESCOLA.
NOVA ESCOLA: Qual o impacto do ensino remoto e da pandemia na construção do projeto de vida de crianças e adolescentes?
VALÉRIA ARANTES: A pandemia tem nos mostrado que precisamos de projetos de vida pautados em valores coletivos, colaborativos. Isso nos diz muitas coisas, nos faz romper com a visão de competitividade. Precisamos ajudar nossos jovens a descobrirem o que de fato os leva ao engajamento e à excelência. E essa excelência não é no sentido de ser melhor, de ganhar, esse não é o modelo que a sociedade precisa agora.
Qual a importância de trabalhar projeto de vida na escola no atual contexto?
O isolamento social não pode nos impedir de promover práticas escolares que fazem jus ao papel da escola. Eu falo de um projeto de vida com sentido ético, a excelência por si só não é suficiente, é preciso a dimensão da ética e do engajamento. Acho que se a pandemia nos sinaliza que precisamos buscar um novo modelo de economia, de política, está claro que também é preciso um novo modelo de educação que se comprometa com esse processo de auxiliar os jovens na construção de projetos de vida com sentidos éticos. Daí a importância de oferecer a eles oportunidades que permitam a reflexão sobre o que há de mais fundamental no sujeito, que são seus desejos, suas aspirações e motivações. E temos de ser criativos para investir nessa empreitada. O projeto de vida nada mais é do que a escolha de como eu quero viver.
Qual é o papel da escola ao ajudar um adolescente a projetar quem ele quer ser no futuro?
É preciso ter consciência de que o projeto de vida tem três dimensões: pessoal, profissional e social, e elas têm de estar juntas, são interligadas. Do ponto de vista do funcionamento psíquico humano, não existe essa dissociação. Já tem alguns anos que a escola defende o conceito de formação integral. Quando a gente defende isso, está defendendo uma formação que contemple conjuntamente os aspectos cognitivos, afetivos, sociais e valorativos. A gente sabe que a escola historicamente não fez isso, ela centrou-se na dimensão cognitiva, nos conteúdos, no desenvolvimento intelectual. Muitas vezes a escola queixa-se de que não é função dela dar conta de tudo. E a família está jogando para a escola. O fato é que deveria existir uma parceria e não é questão de dizer "essa parte é minha, essa parte é sua". Porque o sujeito é único, mas há essa cisão na nossa cultura, a separação entre o sentir e o pensar, o público e o privado, o cognitivo e o afetivo. Só que o sujeito é o mesmo, o sujeito é um todo coeso. Quando eu falo da escolha de uma profissão, por exemplo, falo de aspirações pessoais, de sonhos e desejos. Nilson Machado [professor da Faculdade de Educação da USP] fala que "o desejo é a antessala do projeto". Sem desejo, não há projeto. Eu não posso falar que profissão é uma coisa e o projeto pessoal é outra. Admitir a leitura complexa do psiquismo humano e defender que essa dimensão afetiva seja integrada é fundamental, porque exerce papel importante no processo motivacional e estruturante dos projetos de vida. Como a escola pode fazer isso? A primeira coisa é contemplar a dimensão afetiva. A superação dessa falta de rumo significa a busca desses sentidos, que envolve a complexidade das dimensões do psiquismo humano. Na realidade, o projeto de vida é você dar um sentido ético à vida.
A questão do “fazer sentido” é um dilema existencial em todas as fases da vida, mas na adolescência isso se mostra mais gritante. Quando a gente pensa no quão heterogênea é a Educação brasileira, como a escola pode ajudar os estudantes mais vulneráveis a construírem seu projeto de vida para mantê-los na escola?
Por pior que seja a escola, é preferível a criança e o adolescente lá dentro do que fora. E aí temos um prejuízo violento que a pandemia nos trouxe. A falta de propósito, de direção, esse vazio existencial existe em qualquer classe. Agora, trabalhando e desenvolvendo há muitos anos projetos em escolas públicas de periferia, não sou ingênua de achar que todos têm as mesmas condições, jamais. As diferenças entre as escolas de periferia e as instituições privadas são enormes, absurdas e injustas. Uma recente pesquisa entrevistou aproximadamente 90 jovens de periferia e uma das coisas que chamaram atenção é que a grande maioria dos participantes focou o discurso sobre seu projeto de vida estritamente na dimensão profissional. Isso leva a uma interpretação de que a maioria desses jovens via somente no trabalho, no sucesso financeiro, a forma de superar as inúmeras lacunas, ausências, faltas, que a vida lhes impôs. E nos obrigou a desconstruir uma ideia muito recorrente de que os menos favorecidos não têm projeto, ou não têm ideia sobre o seu futuro. Se temos as aspirações como ponto de partida, é certo também que precisamos lidar com o incerto, o acaso. Esse acaso e essa incerteza não devem nos paralisar. E isso nos conduz à necessidade de considerarmos as singularidades dos nossos jovens. Não existem dois alunos que sejam iguais. A pandemia trouxe à tona o nosso despreparo para lidar com o que é da ordem do desejo e que já não tinha também no presencial. As projeções futuras pressupõem necessariamente o trabalho com o inesperado. O aluno precisa, ao longo da sua formação, ter aprendido coisas que o permitam mudar de rota e superar um obstáculo.
A partir de que momento da formação escolar é possível iniciar o trabalho de construção de um projeto de vida?
Eu acho que o melhor momento para iniciar é desde sempre. Se estamos falando de desejo, de projeções, de ética, de princípios, isso tem de ser aprendido. No Brasil se fala muito de autonomia, virou lugar-comum, mas se fala pouco de autoconhecimento. E como vou ser autônomo se eu não me conheço? Por que os jovens não têm rumo? Porque eles não sabem. A gente saiu de um autoritarismo muito grande, onde o pai mandava e a gente obedecia. E fomos para outro extremo que a gente vê os jovens chegando para os pais ou professores e dizendo que não sabem o que fazem do vestibular, estão em dúvida. Em nome da autonomia, da liberdade, muitas vezes os pais, educadores, dizem "você é quem sabe, a escolha é sua, eu vou respeitar a sua escolha". Mas não percebem que eles estão pedindo ajuda, socorro. E o vestibular, na nossa cultura, torna isso mais grave, porque impõe ao jovem uma escolha extremamente complexa, difícil, aos 16, 17 anos. Então eu acho que a ideia do projeto de vida é desde sempre, porque eu estou falando de autoconhecimento, empatia, resolução de problemas.
Como os professores, mesmo no ensino remoto, podem incentivar seus alunos a construírem seus objetivos de vida e se manterem fiéis a eles, mesmo diante das atuais adversidades?
As escolas estão preparadas? Não. Mas eu também não caio nessa de que tem de preparar a escola para depois fazer. O professor para, de fato, abraçar um projeto acadêmico, escolar, que faça jus a um trabalho que vislumbre a construção de um projeto de vida com sentido ético, tem de ter isso como um projeto de vida para ele mesmo. O conhecimento é um processo pessoal e intransferível. Só que ele é colaborativo, e é bom que seja cooperativo. Quando a gente está falando em aprendizagem baseada em problemas, a gente está falando de trabalho em equipe e em pequenos grupos. Primeiro, que temáticas são importantes? E aí você está trabalhando valores. Os conteúdos tradicionais devem estar a serviço desses projetos e não pode ser o fim da escola.
Para saber mais:
Livros
O Que o Jovem Quer da Vida? Como pais e professores podem orientar e motivar os adolescentes, de William Damon. Ed. Summus, 2009.
NesSa obra, um dos maiores pesquisadores dos Estados Unidos na área da juventude explica o projeto de vida e analisa por que tantos jovens não conseguem se dedicar a algo que traga realizações para si e para o coletivo.
Projetos de Vida: Fundamentos psicológicos, éticos e práticas educacionais, de Ulisses Araújo, Valéria Arantes e Viviane Pinheiro. Disponível gratuitamente aqui.
Escrito por professores e pesquisadores da USP, o livro explicita as origens, os princípios norteadores e a relação dos projetos de vida com a cidadania e a realização pessoal. Analisa também suas modalidades, a formação do professor e as metodologias mais eficazes para colocá-los em prática com os alunos.
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