“É importante tornar as mulheres medievais visíveis”
Para Maria Cristina Pereira, professora de História Medieval na USP, é preciso evitar generalizações sobre o período e valorizar fontes primárias textuais e visuais sobre as mulheres na Idade Média
A Idade Média era machista? As mulheres eram submissas? Para além das grandes senhoras, nobres e europeias, retratadas nos livros de História, o que faziam e como viviam as mulheres comuns da era medieval?
Para responder essas e outras perguntas sobre as figuras femininas desse período histórico que durou cerca de dez séculos, Nova Escola entrevistou a historiadora Maria Cristina Correia Leandro Pereira, doutora em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, e professora de História Medieval da Universidade de São Paulo (USP).
Confira a seguir:
NOVA ESCOLA: Você acredita que parte da história da contribuição social das mulheres, em diversas áreas, foi apagada? A ausência de documentos que dariam pistas de como era a vida de mulheres tidas como “comuns” daquele tempo seria um indicativo disso?
Maria Cristina: A sociedade ocidental (não só ela, mas falo do que conheço mais) tem, na longa duração, uma estrutura patriarcal, e isso se reflete em muitos aspectos – como, por exemplo, a disciplina História ter sido exercida apenas (ou majoritariamente) por homens durante muito tempo.
Da mesma forma, seu objeto de atenção principal foram os homens. E, ademais, não quaisquer homens, mas os que se destacavam, os “grandes homens”. Quando essa importância, atribuída só aos grandes nomes, às grandes datas, aos grandes acontecimentos, começou a ser colocada em xeque, ao longo do século XX, começou a ocorrer também um movimento de abertura em relação aos temas de estudo – incluindo, muito graças ao trabalho de historiadoras e teóricas feministas, as mulheres.
Mas muita coisa se perdeu antes disso – em termos de documentos, por exemplo. Mais que isso: muitos textos foram lidos com uma lente que colocava o homem como sendo o protagonista “natural” (conceito que certamente deve ser questionado).
E sobre as mulheres da era medieval que não são comumente retratadas nos livros, isto é, para além das europeias brancas que ocupavam posições sociais de destaque? O que pode ser dito sobre elas?
É importante lembrar que a questão racial não é tão fundamental para a Idade Média como o é para nossa sociedade. O próprio termo “raça” só aparece no séc. XVI. Na Idade Média há termos como gens, por exemplo, que tem uma ideia de povo, de origem. O que seriam povos negros, segundo nossa acepção, eram designados usualmente como etíopes, ou como mouros, fazendo referência basicamente à procedência geográfica.
Assim, não tem muito sentido então falar em negros, como substantivo, para evocar um recorte étnico ou racial. Encontramos o termo basicamente como adjetivo, designando uma cor.
Isso tem muito a ver, de certa forma, com a relação que havia então com a escravidão: diferente da moderna, que infelizmente conhecemos no Brasil, ela não estava associada a uma ideia de “raça”, mas em geral a uma derrota militar sofrida por um povo, ou um determinado grupo social, que então era escravizado.
Além disso, e esse é um ponto fundamental, a alteridade na sociedade medieval cristã está relacionada intrinsecamente à religião: o “outro” por excelência (ou “a outra”) eram os judeus e os muçulmanos (que podiam ser de várias origens étnicas). E os hereges.
Por outro lado, há uma dimensão estética relacionada às cores que envolve juízo de valor. Na Idade Média, valoriza-se muito tudo que é brilhante e luminoso. Por conseguinte, o branco e o amarelo, o dourado e o ouro são muito valorizados. Uma mulher bela é geralmente descrita como tendo cabelos dourados e a tez muito branca. Em contraste, o que é sem brilho, opaco, escuro é geralmente conotado negativamente. O diabo é muitas vezes descrito assim. Mas não há uma associação direta entre a cor negra e algo negativo. A própria cor negra pode ser brilhante: no latim, havia dois termos para essa cor, ater e nigrus, o primeiro sendo o preto opaco e o segundo o preto brilhante (assim como havia albus e candidus para o branco). Assim, também pelo ponto de vista do juízo de valor estético, por assim dizer, pessoas negras (etíopes, por exemplo) não eram vistas automaticamente por um prisma negativo. E quando eram criticadas, o eram basicamente por não serem cristãs.
É importante lembrar que havia negras e negros na sociedade medieval, referenciados em textos e imagens – não só documentos, mas também na literatura. De modo algum se tratava de uma sociedade apenas branca, como muitos grupos de extrema-direita pretendem. Voltando à pergunta, considerando que a alteridade é sobretudo religiosa, não se encontrariam mulheres não cristãs em posição de destaque na sociedade medieval cristã. Quanto às mulheres cristãs não europeias, isso era possível, embora não muito frequente.
Mas se expandirmos o nosso olhar mais para o Oriente, vamos encontrar em primeiro lugar a sociedade bizantina – que, do ponto de vista geográfico, não é inteiramente só europeia, embora seja herdeira do Império Romano (do Oriente) e do mundo grego. Nela as mulheres têm em geral mais destaque e mais agência que no mundo latino: encontramos muitas autoras, historiadoras, imperatrizes etc. Se continuarmos para além do mundo bizantino, iremos encontrar outras sociedades: árabes, persas, mongóis, chinesas etc.
No contexto do que se costuma chamar de Ocidente medieval, ou seja, a cristandade latina, aponto para uma mulher negra muito conhecida e muito citada em texto e representada em imagens, sobretudo a partir do séc. XIII, embora mítica: a rainha de Sabá, que segundo a Bíblia teria visitado o rei Salomão. De acordo com a tradição medieval, ela seria negra e rainha de um povo próspero e cristão para além da Etiópia, que iria se aliar aos cristãos e ajudar a derrotar os muçulmanos.
É possível, hoje, “resgatar”, ou até mesmo ressignificar, a história das mulheres da Idade Média?
É importante estudar as mulheres na Idade Média, relendo fontes já conhecidas e buscando novas. É claro que, além de pensar nas mulheres como grupo, ainda há muitas mulheres (na qualidade de indivíduos) que foram deixadas de lado, que são desconhecidas para nós, e que devem ser estudadas até para mostrar que a Idade Média não era simplesmente esse período absolutamente misógino que o senso comum imagina e que as mulheres tinham possibilidades de agência dentro das limitações que lhes eram impostas.
Cito, por exemplo, o caso de Jeanne de Clisson (ou de Belleville), uma nobre que teria decidido se vingar do marido morto tornando-se pirata. Mas essa lista pode ser alongada enormemente, com outras personagens tanto históricas quanto fictícias pouco conhecidas, como: Azalais de Pourcairagues, Beatriz de Nazaré, Marguerite d’Oingt, Hadewijch, Mechtild de Magdebourg, Marguerite Porete, etc.
Enfim, é importante não estudar as mulheres separadamente, assim como tampouco os homens. Se há construções sobre como devem ser as mulheres, também há sobre como devem ser os homens, variando o grau de explicitação, de detalhamento etc. São esses discursos que fizeram do homem o neutro, a norma, e da mulher, o outro. E são esses discursos que precisam ser apontados pelo que são: apenas discursos, construções.
De quais formas esse assunto pode ser explorado por professores do Fundamental 2? Quais propostas podem ser interessantes? Como considerar raça e gênero nas escolhas feitas? Como aguçar o olhar crítico dos alunos?
Acho importante usar fontes primárias textuais e visuais que mostrem as mulheres, não naturalizar o gênero masculino como universal ou neutro, citar exemplos de mulheres em campos diversos, sem reforçar estereótipos.
Para o Ensino Fundamental 2, em primeiro lugar, é importante tornar as mulheres medievais visíveis e depois discutir todos esses problemas que listei antes, ainda que isso acabe por privilegiar certos recortes (a começar pelos cronológicos).
Uma atividade interessante para ser feita em sala de aula seria mostrar uma imagem feita por um homem e outra por uma mulher e pedir aos alunos, sem saber a autoria, para levantar as diferenças entre elas e, depois, perguntar se saberiam dizer se foram feitas por um homem ou uma mulher – e, se pudessem fazer essa distinção, quais seriam os motivos. Isso poderia gerar um bom debate.
E também é importante evitar generalizações, como “a Idade Média era machista”, “as pessoas eram iletradas”, por exemplo; elas são perigosas e simplistas. Embora a situação concreta das mulheres na Idade Média fosse difícil, sobretudo as que não pertenciam à elite, havia espaço para negociações e para a agência das mulheres.
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