Para repensar

O que a História nos conta (ou não) sobre a vida das mulheres da Idade Média?

Elas foram princesas, copistas, camponesas e muito mais. Ampliar a visão sobre as mulheres medievais ajuda a aprofundar o entendimento sobre o período e a desconstruir estereótipos

Ilustração de pessoas ao redor de uma fogueira acessa em uma floresta
Ilustração: Mari Waechter/NOVA ESCOLA

Quem eram e como viveram as mulheres na Idade Média?

Sabemos que umas poucas pertenciam à nobreza, outras dedicaram-se à vida religiosa e algumas, ainda, desafiaram os papéis aos quais são geralmente associadas, como a submissão das esposas, a delicadeza das princesas e o silêncio das freiras. 

Mas é possível que você não tenha ouvido falar de muitas delas na escola - e nem encontre com facilidade muitos exemplos nos livros didáticos ou em filmes históricos. Ainda assim, é possível e desejável ampliar a visão de alunos e alunas a respeito da vida e da contribuição delas para o quadro do período medieval, localizado entre os anos de 700 a 1500. 

Em geral, a História oficial trata das mulheres sobre as quais há mais fontes primárias - como rainhas e grandes senhoras laicas e eclesiásticas - como um fenômeno paralelo ao do mundo dos homens homens, explica Maria Cristina Correia Leandro Pereira, doutora em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, e professora de História Medieval da Universidade de São Paulo (USP). 

A especialista explica que as rainhas são mencionadas, principalmente, em questões de genealogia para, por exemplo, estabelecer linhagens, ou quando ocupam o trono como regentes. Além disso, também são lembradas em assuntos que envolvem genealogia, disputas políticas, doações e posse de terra. Quanto às grandes senhoras eclesiásticas, trata-se, sobretudo, de abadessas ou monjas que se destacam, ora por seu papel administrativo e político, ora por seu papel intelectual. Já outras mulheres acabam sendo englobadas na vasta categoria camponesas, explica Maria Cristina. 

“Assim como ocorre com os homens, de modo geral, na História mais tradicional tende-se a valorizar ‘grandes nomes’, indivíduos que se destacaram. Daí se conhecem, ou pelo menos se citam, mais personagens como a rainha Branca de Castela, Joana D'Arc, Hildegarda de Bingen ou Cristina de Pisa”, comenta Maria Cristina.

Hildegarda de Bingen (1098-1179), por exemplo, foi uma abadessa de grande influência. O cargo, na época, podia ser comparado ao de uma diretora de escola: ela ensinava e acompanhava o progresso na aprendizagem de suas alunas, outras religiosas. Ao longo de sua vida, escreveu cartas para figuras poderosas e foi a autora de impressões teológicas e também de textos naturalistas para aplicação médica. Ainda adolescente, Joana D'Arc (1412-1431) pegou em armas, inspirou e liderou tropas do exército francês durante a Guerra dos Cem Anos - sua ascensão meteórica, porém, terminou na fogueira de um tribunal da Inquisição. Branca de Castela (1188-1252) é mãe de Luís IX (São Luís), que foi rei da França entre 1226 e 1279. A rainha, porém, exerceu forte influência sobre o governo do filho pelo menos até 1242 e era considerada uma patrona das artes e dos livros. Já Cristina de Pisa (1363-1430) escreveu poesia e foi patrocinada em sua literatura por monarcas franceses. Além de poemas de amor, escreveu panfletos em defesa da honra das mulheres e deu sugestões para a educação delas

Houve mulheres conhecidas pelo seu desempenho no poder, muitas vezes, por disputas com os homens pela sucessão, de acordo com Susani Silveira Lemos França, doutora em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa, em Portugal, e professora de História Medieval da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Ela afirma que nos reinos ibéricos medievais há vários exemplos e, diferentemente do que se convencionou acreditar, disputavam em situação de relativa igualdade para alcançar seus interesses. 

“Nessas disputas, entretanto, vale destacar que um dos argumentos contra elas é o de que sua natureza feminina seria fator em seu prejuízo. Mas é interessante observar, por exemplo, rainhas como Leonor de Aragão, que lutou contra a vontade do rei seu marido para que o filho bastardo deste não assumisse o trono, e ganhou a disputa. Vale ainda lembrar das visionárias, que foram celebrizadas por alegarem ter tido contato direto com Deus e terem sido, por isso, chamadas de vaidosas”, afirma Susani França, que é autora do livro Mulheres dos outros: Os viajantes cristãos nas terras a oriente

Mas e as mulheres comuns, que viveram e morreram à margem dos grandes acontecimentos políticos e não tiveram seus nomes registrados nos livros de História?

Essas aparecem em desempenhos menos glamorosos, mas trabalharam e desempenharam funções para além das domésticas. Eram elas que comandavam a casa, cuidavam da lavoura e outros trabalhos pesados nos períodos prolongados em que os maridos estavam fora, em guerras ou outras atividades. “Para além das rainhas, nobres e religiosas, e as camponesas, havia as mulheres que trabalhavam nas casas, como doméstica, as que exerciam diferentes ofícios. Embora as mulheres não tomassem armas, com raras exceções, muitas vezes acompanhavam os exércitos, cuidando do abastecimento, da saúde e servindo como prostitutas”, completa Maria Cristina. 

A historiadora italiana Silvia Federici, lamenta a ausência dessas figuras durante o percurso escolar. “Eu fui para a escola e tive vários anos na Universidade e, por muitos anos, não aprendi nada. Eu aprendi sobre o feudalismo, os reis, rainhas, batalhas e castelos. Mas nunca me ensinaram sobre as vidas dos servos, camponeses, artesãos”, crítica a autora de Calibã e a Bruxa (Editora Elefante, 2017) em entrevista à revista AzMina. 

Como levar as mulheres da Idade Média para a aula de História?

Quando se fala em Idade Média é comum, a princípio, conectar esse período histórico como se tivesse acontecido apenas no continente europeu, e esse é o primeiro ponto de atenção na hora de levar a temática para as aulas de História. É o que observa Juliana Bardella Fiorot, mestre em História Medieval, professora do Fundamental 2 em escolas particulares de Marcondésia (SP) e autora do Time de Autores de Nova Escola. 

“É essencial que o professor não foque apenas na Europa Ocidental, especialmente, para que os alunos não tenham a impressão, quando foram estudar as mulheres da Idade Média, que esse período ocorreu somente neste continente. Minha dica é que pesquisem o contexto dessas mulheres em outros lugares e contextos do mundo, como a África, onde se tem as grandes rainhas africanas nesse período, como na Nigéria, por exemplo”, ressalta. 

Além disso, não priorize apenas personagens religiosas. “Sabemos que o pensamento teocêntrico da igreja foi determinante ao longo de toda a Idade Média, mas não podemos focar só nas figuras das monjas, por exemplo. É fundamental que os alunos saibam que existiram outras mulheres desempenhando outros tipos de função”, reforça a historiadora. A sugestão, portanto, é trabalhar a multiplicidade de mulheres que existiram nesses períodos. 

Outro caminho que pode ser seguido ao discutir o tema com os alunos do Fundamental 2 é explorar os mitos da Idade Média e trazer à tona as histórias das deusas nórdicas ou das mulheres que foram construídas pela Literatura. Neste aspecto, o professor pode se apoiar em trechos de filmes para mostrar à turma como eram as vestimentas, o comportamento e a contribuição dessas mulheres para o desenvolvimento social e cultura da época com a finalidade de confrontar a ideia de que elas eram submissas. 

Susani França sugere que os professores recorram diretamente às fontes históricas (como documentos, imagens artísticas, entre outros) para enriquecer as aulas de História sobre a temática, pois, segundo a especialista, são curiosas, estimulantes e abrem muitas portas. “Busquem se desprender das ideias prontas, em especial quando o assunto são os temas quentes do momento, como raça e gênero. Cada época responde de formas diferentes sobre questões conflituosas, e a história só pode ser rica se olharmos para ela pelas soluções que os outros tempos e povos encontraram. Deixar nossos valores falarem para interrogarmos não pode se confundir com repetirmos fórmulas prontas e atrativas, mas que pouco ampliam os horizontes”, ressalta a professora.


Saiba Mais 

Dicionário da Idade Média, de Henry R. Loyn (org.). Editora Zahar, 1997.

Mulheres, mitos e deusas - O feminino através dos tempos, de Martha Robles. Editora Aleph, 2019.

Calibã e a Bruxa - Mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federici. Editora Elefante, 2017. 

Mulheres intelectuais na Idade Média: entre a medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística, de Marcos Roberto Nunes Costa e Rafael Ferreira Costa. Editora Fi, 2019


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