Para repensar a prática

Corpo em transformação: como apoiar os alunos na construção de uma autoimagem positiva

As videochamadas e as redes sociais podem distorcer a visão de crianças e jovens sobre sua fisionomia e aparência e amplificar casos de ansiedade e depressão. Saiba como amparar os estudantes nessa fase de tantas mudanças físicas e psicológicas

Animação de alunos em vídeo chamada ligando e desligando suas câmeras.
Ilustração: Clara Gastelois/NOVA ESCOLA

No cotidiano, costumamos olhar para os outros muito mais do que para nós mesmos. Com a pandemia e o uso frequente de videochamadas, isso se alterou: passamos a nos encarar por mais tempo nas telas e, para alguns, o efeito colateral disso foi uma percepção distorcida e negativa de si mesmo, o que uma equipe da Faculdade de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, chamou de “dismorfia do zoom”. É um fenômeno que afeta a saúde mental e gera baixa autoestima, ansiedade e busca por procedimentos estéticos. 

“A maioria das pessoas não está ciente de que as câmeras frontais podem deformar os traços como um espelho distorcedor de parque de diversões”, escreveu a equipe em um artigo publicado no International Journal of Women's Dermatology.

Estudantes que passaram períodos letivos inteiros em frente às câmeras, já em uma fase sensível em relação à autoestima e à identidade, também podem ter sentido esses efeitos, intensificados por todo um contexto anterior, de uma geração que cresceu imersa no contexto das redes sociais.

“Vejo meus alunos e alunas alfabetizando-se nesse universo digital, movido por uma cultura de filtros, nem sempre percebendo o mundo escondido por trás de uma foto ou vídeo dos influenciadores que eles adoram. Essa exposição excessiva às telas e a referências muito fora da realidade são fatores que contribuem para a dismorfia”, afirma o professor de educação física Luiz Gustavo Rufino, da rede pública de Paulínia (SP).

Redes sociais e os padrões estéticos e de comportamento

Em setembro deste ano, o jornal americano The Wall Street Journal revelou documentos mostrando que o Facebook sabe que o Instagram é danoso para adolescentes, sobretudo meninas. Os dados indicam problemas de imagem corporal, ansiedade e depressão.

Para além de corpos perfeitos, as redes sociais impõem ainda um padrão psicológico, regido por positividade, bem-estar e alegria. “As contradições, ambivalências, medos, desamparos, tristezas e indeterminações são varridos para debaixo do tapete nas redes sociais, que trazem uma perspectiva de julgamento moral extremamente rígida, que exige perfeição. Passar a infância e a adolescência de forma massiva dentro dessa lógica nos sinaliza que veremos chegar nos consultórios um número expressivo de sofrimentos psíquicos”, observa a psicóloga Viviane Neves Legnani, que foi consultora do projeto de saúde emocional do educador em parceria com a Fundação Tide Setubal.

Efeitos da pandemia

Somados aos novos fenômenos ligados ao mundo digital, a pandemia e o distanciamento social geraram outras questões que podem impactar a autoimagem e a autoestima dos estudantes. Trancados em casa, sem muitas possibilidades de atividade física ou ansiosos, algumas crianças e adolescentes ganharam peso. Outros, entristecidos, pararam de comer e emagreceram.

Além disso, há as transformações naturais que crianças e adolescentes do Ensino Fundamental atravessam neste período da vida – ficar mais alto ou não tão alto quanto os colegas, as espinhas que começam a despontar na pele, o rosto de criança que vai se tornando mais maduro, as mudanças na voz, o surgimento dos seios e de pelos. São transformações que ocorrem de maneira sutil dia a dia. No entanto, em um reencontro após quase dois anos distantes, podem ter um impacto maior.

“É muito tempo distante e pouco tempo de interação efetiva nesse período. Nas aulas on-line, tem os que nem ligam a câmera, ou quando ligam aparece só o rosto ou um pedaço dele, e mesmo a voz fica distorcida. Viramos um mosaico, um pedaço nosso aqui e ali”, reflete Luiz Gustavo. 

Nessa retomada presencial, o educador tem percebido seus estudantes mais inseguros, com vergonha de seus corpos, expressos na maneira encolhida de andar ou pelo uso de blusas de frio no calor. Esse último ponto, em especial, chama atenção: “Eu fico atento porque isso costuma indicar baixa autoestima ou sinais de violência doméstica”, explica.

Os impactos do racismo

Há, ainda, o racismo estrutural em nossa sociedade que, mesmo antes do contexto da pandemia e das redes sociais, já impactava, dentre outras dimensões, a autoestima dos estudantes não brancos. 

“Existem padrões estabelecidos pela mídia e pela sociedade que globaliza desejos e padroniza modos de ser e estar no mundo, quando na verdade somos todos diferentes. Esses moldes sempre privilegiam o branco e o padrão de beleza da mulher branca. Tudo isso maximiza os impactos do mundo virtual e da pandemia e precisa ser levado em conta”, destaca Fábio Augusto Machado, coordenador pedagógico na rede pública de São Paulo (SP) e autor de um projeto envolvendo identidade e autoestima de estudantes da periferia da capital paulistana, que foi um dos vencedores do Prêmio Educador Nota 10 em 2016.

Como o professor pode ajudar?

Tematizar essas questões na escola demanda uma ação coletiva para que o trabalho não fique restrito a um único professor ou a um projeto pontual, que logo será esquecido. Além disso, é necessária a atenção da equipe inteira para identificar as possíveis questões em jogo.

“Na minha escola, pude perceber coisas que outros professores não perceberam porque, na Educação Física, fica mais evidente do que com o aluno sentado na carteira. Então, é preciso muito diálogo entre os profissionais”, recomenda Luiz Gustavo.

Para além de educadores atentos, é necessário ouvir os principais alvos desse trabalho: os próprios estudantes. Essa escuta pode ser feita por meio de estratégias individuais e coletivas que favoreçam laços de confiança e trocas significativas. Nessas conversas, vale ir além da concepção de autoestima que se restringe à satisfação com a própria aparência, e olhar também para a história, os desejos, realidades e vivências desses estudantes.

“Vamos acolher de verdade as crianças e jovens, entender e valorizar como foi a pandemia para eles e essas transformações como um todo que estão acontecendo. Depois, é entender o que a escola pode fazer, dentro das possibilidades do processo educativo”, orienta o professor Luiz Gustavo.

Em última instância, o que está em jogo nesse trabalho é promover entre os estudantes uma cultura permanente de valorização e respeito às diversidades, tanto as dos outros quanto as de si mesmo, a fim de garantir a eles uma formação cidadã, mais humana, que possa contribuir para interromper o ciclo de violências dentro e fora da escola.

“É preciso que a escola, juntamente com os alunos, questione a base dessa visão da nossa sociedade tão estanque, que valoriza determinados atributos, culturalmente, socialmente e economicamente produzidos, e que levante esse véu de todas as violências que eles vivem”, conclui a psicóloga Viviane.

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