A pequena grande revolução democrática em Novo Hamburgo
Ao trazer as assembleias para o cotidiano da escola, uma orientadora pedagógica de Novo Hamburgo fortaleceu os princípios da democracia no ambiente escolar
A mudança começou de forma sutil, quase despercebida. Mas mexeu em um aspecto importante na escola: a circulação das pessoas no prédio. Uma vez por semana, durante 15 minutos, todas as professoras do Fundamental 1 da EMEF Adolfina J.M. Diefenthäler, em Novo Hamburgo (RS), saíam de suas turmas para contar histórias em outra classe.
Isso aconteceu em 2013, um ano após Joice Lamb – formada em Letras e que até então havia atuado como professora – assumir sua nova função na escola, a de coordenadora pedagógica.
De lá para cá, ela viu a Adolfina fortalecer a marca da democracia na escola, o que ajudou a atravessar a crise da pandemia, ainda que a escola também tenha sentido seus efeitos. As trocas, antes intensas, sofreram as turmas reduzidas e o menor contato social durante o ensino remoto emergencial. Por outro lado, a adoção da tecnologia agora é uma realidade e as famílias buscaram manter o elo com a escola ao longo da quarentena. “Também houve uma preocupação nas famílias em criarem formas de conexão; vimos que muitos alunos em 2020 não tinham celular e em 2021 já tinham um para assistir às aulas”, conta Joice.
De volta a 2013, Joice chegou ao posto de coordenadora pedagógica pelo diretor, recém-eleito como seu vice pelos votos da própria comunidade, e que desde o ano anterior vinha tentando criar opções para as reiteradas situações de violência e agressões envolvendo as crianças da escola.
“E ao analisar com os professores como resolver essa questão da violência, as iniciativas eram sempre as mesmas: vamos chamar o responsável, vamos passar um filme pra turma que fale sobre o valor da amizade etc. Mas isso não alterava muito. Era como dizer pra alguém ‘seja bom’”, recorda.
Joice pensou, então, que poderia começar a mudança no clima mexendo na circulação das pessoas, e fez a proposta dos 15 minutos de leitura. “As pessoas achavam que o objetivo disso era incentivar a leitura, mas, na verdade, o que eu queria era que os professores saíssem de suas turmas, entrassem em contato com outros alunos, e esses alunos também tivessem contato com outros professores, já que essa escola é de Fundamental 1, que tem um professor para cada turma”, explica a coordenadora, que depois de se formar em Letras também fez especialização em gestão escolar.
Ao identificar a oportunidade de aplicar o que havia aprendido, uma de suas certezas era de que seria preciso desalojar alunos e professores de seus lugares tradicionais. “A escola é uma estrutura muito fechada, cada um no seu quadradinho. O professor conhece os alunos do seu ano, e só. E depois que ele passa para outra série, já não se interessa mais por ele. E se falava que isso era autonomia do professor, ‘o meu direito de reprovar o aluno, o meu direito de dar aulas como eu quero’, mas não é verdade. Isso é solidão. Se você está sozinho pra resolver todas as questões que aparecem, você está abandonado. Autonomia é outra coisa”, observa Joice.
Tanto alunos quanto professores aprovaram a iniciativa, e a coordenadora viu que estava no caminho certo ao observar a hora do intervalo. Como a cidade não tem o papel de monitor, essa função é exercida, em esquema de rodízio, pelos próprios docentes, que antes se queixavam de que eles não eram ouvidos pelos alunos. “Os alunos passaram a reconhecer os outros professores, porque agora eles os conheciam da hora da leitura, já não era um desconhecido”, explica a coordenadora.
A nova circulação havia criado uma saudável sensação de pertencimento, que agora precisava ser ampliada. “O passo seguinte era fazer todos se reconhecerem porque o sistema seriado não favorece isso, você está sempre com aqueles da sua série. Daí propusemos o “Fora da caixa”, que são oficinas que os professores desenvolvem com alunos de diversos anos escolares, da Educação Infantil ao 5º ano”, relata. Assim, surgiram oficinas de trabalhos manuais, de confecção de bolos, jogo de bocha, pintura de mandalas, desafios matemáticos e várias outras, de acordo com a habilidade e o talento de cada docente. A única diretriz dada pela coordenação era de que a oficina fosse possível de ser feita em qualquer idade, e com movimento. Se houvesse um debate, teria de ser interativo, nada de aula expositiva.
Criou-se na grade curricular o espaço de uma hora semanal para as oficinas, que de tanto sucesso que fizeram foram incorporadas ao cotidiano da escola, que há seis anos continua com a prática, sempre renovada. “Houve um ano em que fizemos oficinas condensadas, que duravam duas ou três semanas. Tudo em consenso com os professores”, explica Joice Lamb. E analisa o resultado: “Basicamente, o que aconteceu é que as pessoas passaram a se reconhecer. Essa é uma escola de bairro; ou seja, os alunos moram todos no entorno, aqui em São José. Muitos deles se cruzam nas ruas, eles sabem quem é vizinho de quem, têm primos e irmãos na escola”.
Por essa razão, em 2018 houve mais uma mexida na circulação das pessoas na escola: o recreio passou a ser unificado, com todas as crianças juntas, das pequenas às maiores. Sem que os menores fossem machucados, como chegaram a aventar alguns pais diante da medida. O mesmo bom convívio se estenderia à ida semanal à praça na vizinhança, nascida, aliás, por iniciativa da própria escola, que se mobilizou em um ano de orçamento participativo para reivindicar a criação de uma área verde em um terreno abandonado no bairro.
A força das assembleias
E onde poderia ter nascido a ideia da praça? Em uma assembleia, presumivelmente, elas passaram a ser integradas ao cotidiano da escola, que se renovava e via cair, dia após dia, as ocorrências de incivilidade e violência. Em vez disso, diálogo e respeito foram sendo treinados nas assembleias, já que a participação em fóruns coletivos democráticos também precisa ser aprendida – e praticada.
As assembleias de turma acontecem uma vez por mês, desde a Educação Infantil até os alunos de 5º ano. E há uma conferência escolar no fim do ano, em que se vota onde será gasto o dinheiro no ano seguinte e quais serão as metas para o próximo ano. “No início achávamos que era necessário conduzir as assembleias das turmas. Os professores estavam presentes e nos cobravam que houvesse um tema para debaterem. Mas se há um tema, é uma reunião de trabalho, não é um espaço aberto para qualquer manifestação. Assembleia é um exercício de voz daquele grupo de pessoas, e essa voz tem de vir deles espontaneamente”, reflete a coordenadora. Com isso, decidiu-se que apenas as crianças até o 3º ano, que ainda estão com dificuldades na escrita, teriam ajuda dos professores. “A presença do professor impõe, naturalmente, a sua visão. Se uma assembleia não traz nada, é porque não há nada relevante. Eles precisam tomar responsabilidade sobre a postura. Quando chegam com alguma queixa, o que dizemos a eles? Coloquem essa questão na assembleia, se organizem. A gente tem essa ideia de que os professores precisam organizar tudo, mas é quando a gente deixa os estudantes livres é que vamos saber que a aprendizagem de autonomia foi real”, resume.
As questões levantadas nas assembleias são levadas a um grupo de gestão, composto por professores e funcionários, que responde a elas, às vezes explicando que a solução pode estar fora da escola – como quando as crianças reivindicaram mudanças no cardápio da merenda, que é decidido pela nutricionista da Secretaria Municipal de Educação.
O importante, destaca a coordenadora, é dar resposta a tudo o que for levantado, para que a assembleia nunca perca seu poder de ser um espaço de fala. E de escuta.
O que significa dizer, também, um espaço de conflitos, como observa Maura Barbosa, formadora de professores do Cedac e que tem seu foco de atuação junto a diretores e coordenadores pedagógicos: “É preciso aceitar também a discórdia porque o gestor vai lidar com gente que está querendo muito acertar, mas que pode pensar de maneira diferente. Há também aquele que é resistente porque na verdade está precisando de ajuda. O tempo todo é preciso estar na escuta e na devolutiva. O diretor, ou o coordenador pedagógico, também precisa ter encontros regulares com toda a equipe para discutir a gestão da escola, dos recursos e, o que é sempre mais complicado, das relações interpessoais nesse ambiente”, comenta a educadora.
A coordenadora pedagógica que resolveu colocar tudo isso em prática concorda: “O principal objetivo de se criar uma assembleia é garantir um espaço de fala. Ser democrático não é ser uma pessoa boa ou querida, mas ser aquele que ouve, que dá espaço para outras pessoas se expressarem. Quando se fala em democracia na escola se pensa que o objetivo é de que a escola seja democrática. Na verdade, a democracia não é o objetivo a alcançar o ponto de chegada. Ela é o caminho para se chegar a uma escola de qualidade, que seja inclusiva. O que nos leva a chegar a uma educação de qualidade é o caminho democrático”, sintetiza Joice Lamb, que com o seu trabalho foi premiada como Educadora Nota 10 no ano de 2019.
Mais sobre esse tema