PARA SE APROXIMAR DAS FAMÍLIAS

“A escola precisa abrir um espaço especial de escuta das famílias na retomada”

A psicóloga Dulcinéia Ferreira ressalta a importância do acolhimento na volta e reflete sobre os impactos de possíveis perdas relacionadas à covid-19

A psicóloga acredita que o retorno gradativo trará mais segurança aos responsáveis. Ilustração: Nathália Takeyama/NOVA ESCOLA

O sucesso do retorno às atividades presenciais vai depender muito da parceria estabelecida entre escolas e famílias. Para a experiência ser bem-sucedida, a escola precisa dar o máximo de garantia aos pais de que ali se trata de um espaço seguro. Mas como assegurar isso nesse novo cenário, onde nem a ciência tem todas as respostas? 

“Não há uma fórmula, a única certeza é de que é preciso muito diálogo e escuta entre as partes envolvidas antes da retomada”, diz a psicóloga clínica Dulcinéia Finotti Ferreira, que atua na creche Baroneza de Limeira, em São Paulo. Com anos de experiência no atendimento a crianças, professores e famílias em escolas de Educação Infantil, a especialista enfatiza que a palavra-chave do momento é acolhimento. “A escola precisa abrir um espaço especial de escuta, e isso inclui ouvir as angústias de famílias, crianças, professores e funcionários.”

Que estratégias de acolhimento a escola deve adotar para receber as famílias e as crianças?

Dulcinéia Finotti Ferreira: O coronavírus trouxe novas questões à tona, diante das quais poucos estão preparados para lidar. Além das reações psicológicas individuais, temos reações coletivas. Medo, insegurança diante das incertezas, isolamento, dúvidas, ruptura com o cotidiano. A escola ainda não tem uma resposta sobre o que vai acontecer, especialmente na Educação Infantil: quando as atividades presenciais vão recomeçar, quais as estratégias para o atendimento... tudo isso está sendo construído aos poucos. Estamos aguardando diretrizes. Creio que o retorno gradativo traria mais segurança aos pais, assim como o envolvimento deles na construção das estratégias de retomada. Muitas escolas estão fazendo isso, em reuniões on-line, proporcionando espaço de escuta para inseguranças e discutindo todas as implicações desse retorno.

Para diferentes fases da criança há situações novas a serem enfrentadas. Como a escola pode dar conta disso?

No caso das crianças de até 2 anos, a fase será de readaptação total. Vai ter muito choro e estranhamento no geral, pois a situação é nova. Dos 3 aos 4 anos, já há um processo de socialização maior em curso, a criança já tem alguns vínculos com amigos, e isso é um ponto a favor, pois ela, de forma geral, foi tolhida de se relacionar com amigos durante a quarentena. A criança não estava de férias, não estava indo na casa de amigos, saindo. Acredito que entre essas haverá mais prazer no retorno, o que pode ser um facilitador. De 5 a 6 anos temos esse processo de socialização ainda mais forte, e a criança já está mais focada no processo de aprendizagem.

Seja qual for a fase, é muito importante a acolhida que a escola faz aos pais, pois isso tem impacto na educação dos filhos. Eles precisam ter claro que não podem passar insegurança para os filhos, o que é natural que ocorra. Mas isso aumenta muito a insegurança da criança. É importante os professores estarem atentos a isso, fazerem parceria com os responsáveis no sentido de conversar muito sobre tudo o que os preocupa antes do reinício. Criar um espaço de escuta é fundamental. Quando isso ocorre, juntamente com os pais, a escola pode focar melhor nos pontos positivos da retomada. Agora, é a hora de trabalhar muito no sentido de diminuir a ansiedade geral, não vejo outro caminho.

Muitas famílias podem ter passado por perdas importantes por conta da pandemia. Como lidar com esse luto?

O processo de luto depende de cada pessoa, é muito individual e está ligado também à natureza dessa perda. Minha avaliação é de que há certa diferença no luto acarretado pela covid-19 em relação ao de outras mortes. Pelo fato de atingir muitas pessoas ao mesmo tempo, dá a entender que a “sua” dor é também parte da dor do outro. Como se fosse uma morte em comum. Vale lembrar que o luto tem fases: o choque, o desespero e a desorganização da pessoa diante daquela perda podem ser mais ou menos intensos, dependendo do contexto. A ideia de “morte em comum” facilita de certa forma o enfrentamento dessas fases: é como se a pessoa não estivesse sofrendo sozinha. 

Mas há outros pontos a serem levados em consideração: muitos podem culpar a política de enfrentamento da covid-19 pela morte, o que pode intensificar o luto. A família tem de ver cada caso e entender como cada um, em especial as crianças, está vivenciando isso. Alguns pais ou mães podem estar passando por isso de forma muito sofrida e até deixar para segundo plano o papel de cuidar do filho por conta do luto. A criança que está nesse meio vai chegar muito fragilizada. E podem existir agravantes aí, dependendo da pessoa que se foi: pode ter sido o pai ou a mãe da criança e isso cria uma desestruturação muito maior, claro. Professores precisam estar muito atentos e, em algumas situações devem indicar um encaminhamento psicológico para a família, para dar um suporte, porque pode acontecer de a escola sozinha não conseguir lidar com essa dor, especialmente se a criança estiver muito envolvida nesse processo. Talvez essa criança também precise de um encaminhamento especial.

Como o isolamento social pode afetar as famílias na hora de se reintegrarem ao ambiente escolar?

Existem diferenças entre as famílias, porque há aquelas que ficaram em isolamento social o tempo todo e aquelas que não conseguiram, porque tiveram de trabalhar. Para as que cumpriram à risca o isolamento, a característica mais marcante é a insegurança do retorno. Os pais estarão mais ansiosos, querendo saber cada detalhe da escola, como se estruturou, quantas crianças serão por sala, como garantir que elas não se toquem etc.  As famílias que não puderam vivenciar tanto o isolamento também estarão preocupadas, mas acredito que em menor grau. Muitas dependem essencialmente da escola para poder trabalhar. De qualquer forma, todos precisam estar muito bem informados sobre como serão as aulas. Haverá mais atividades ao ar livre? Menos crianças, menos contato entre elas? Como a escola vai controlar isso? Para aplacar essa ansiedade, a escola deve tranquilizar os pais falando com antecedência sobre todos esses detalhes. Mesmo assim, algumas famílias não vão querer de jeito nenhum que seus filhos retomem as atividades presenciais. A escola vai ter de lidar com isso. O que pode garantir a segurança, enfatizo, é acolher de fato os medos das famílias, com atenção especial aos mais vulneráveis.

Como as escolas podem ajudar as famílias a darem autonomia às crianças após um período tão longo de isolamento?

De novo, vale a escuta humanizada. Talvez, por conta do isolamento, algumas situações de rotina foram perdidas – e, com eles, alguns limites impostos anteriormente. Horários para acordar, dormir, fazer as refeições, se ocupar em alguma atividade: as famílias vivenciaram isso de forma diferente. Por outro lado, nas famílias em que os pais precisaram trabalhar e se ausentar na fase da quarentena, talvez as crianças tenham conquistado mais autonomia. Talvez elas tenham aprendido a fazer suas refeições de forma mais autônoma, por força da necessidade mesmo. 

Algumas famílias ficaram sem empregada doméstica durante o isolamento. Então os pais talvez tenham dado a elas pequenas tarefas, como tirar o prato da mesa após a refeição ou guardar os brinquedos depois de brincar, por exemplo, coisas que não tinham o hábito de fazer. O que a escola pode e deve fazer é ressaltar sempre que dar limites, seja qual for a situação, é essencial. Mesmo as crianças estando em casa, elas devem ter horário para acordar, almoçar, brincar, tomar banho, dormir. As dificuldades com o isolamento levaram, certamente, muitas famílias a fazerem concessões, para poupar as crianças de mais estresse. Mas isso, embora compreensível, não deve ser estimulado. O que eu aconselho é sempre os pais validarem o desejo da criança na hora de impor as regras. Dizer “eu sei que você não quer parar de brincar para tomar banho agora, mas é preciso... Eu também não gostaria de parar tudo o que estou fazendo agora para ir cozinhar, mas preciso”. Essa conversa ajuda bastante a criança a compreender a necessidade dos limites. A escola precisa orientar que isso ocorra, mesmo a distância, para que a criança retome as atividades presenciais sem que tenha perdido a autonomia conquistada antes da quarentena.

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