Para saber ainda mais

Pequeno esboço para um dicionário inspirado em Lélia Gonzalez

Leia e entenda alguns dos principais conceitos discutidos pela intelectual, fundamental para a interpretação do Brasil

Amefricanidade, interseccionalidade e outras ideias de Lélia Gonzalez estão listadas neste material. Ilustração: Flavia Borges/NOVA ESCOLA

Lélia Gonzalez é fundamental para o pensamento feminista negro brasileiro – e mundial –, bem como para desvelar as complexidades do nosso país. No entanto, por muito tempo a autora ficou ausente das bibliotecas e das livrarias, o que dificultou a dispersão do seu pensamento por aqui. Recentemente, uma coletânea de ensaios e textos da autora foi lançada pela Zahar/Cia. das Letras, quebrando esse jejum.

Para te ajudar a saber mais sobre os conceitos discutidos por Lélia e navegar pela sua obra, preparamos um breve dicionário em que listamos algumas de suas ideias principais.

Confira: 

Amefricana/amefricanidade: Conceito criado por Lélia. Uma tradução do movimento diaspórico da população afrodescendente nas Américas, uma articulação sobre a experiência afro-latino-americana. “Para além do seu caráter puramente geográfico, ela designa todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (resistência, acomodação, reinterpretação, criação de novas formas) referenciado em modelos africanos e que remete a toda uma construção de identidade étnica.” (Lélia Gonzalez, 1988)

Baile black: Espaço de interação, troca, afetos, entretenimento e resistência da população negra. Para Lélia, os bailes black, as escolas de samba e outras manifestações culturais negras não eram apenas local de entretenimento ou esvaziamento, eram espaços de construção e resistência política preta.

Branquitude/Privilégio racial: Característica que estrutura a sociedade brasileira, um conjunto de práticas e articulações culturais, econômicas e sociais que privilegiam as pessoas brancas, configurando a branquitude, explorando as pessoas negras e indígenas.

Capitalismo brasileiro: Estrutura e prática econômica  que articula um desenvolvimento desigual e combinado e promove uma grande massa marginalizada. Em seus textos, Lélia racializa a problemática do capitalismo brasileiro, ao explicitar que o desenvolvimento econômico na sociedade, em toda a sua história, é um processo de exclusão e marginalização da população negra.

Decolonialidade: Embora este seja um conceito muito utilizado atualmente, Lélia foi uma precursora da construção do conhecimento decolonial ao questionar as referências teóricas e a construção de conhecimento apenas pelo viés eurocêntrico.

Democracia racial ou “mito da democracia racial”: Conceito amplamente difundido por Gilberto Freyre, que encontra críticas e tensionamento propostos pelos intelectuais negros. A democracia racial tem como principal aspecto e articulador a “miscegenação do povo brasileiro” como elemento que fundamenta a sociedade, mas que apaga e exclui os povos originários e negros, ao afirmar que não há racismo no Brasil, por ser uma nação miscigenada.

Diáspora: Lélia, assim como Beatriz Nascimento (1942 - 1995), via no Atlântico o espaço para as trocas e construção simbólica da experiência negra nas Américas. A diáspora negra provocada pelo processo escravagista constitui aspectos culturais de preservação de valores e práticas africanas em todos os territórios.

Feminismo: Ao longo de 1976 a 1985, conhecido como a Década da Mulher, denotou-se um marco importante para o ativismo feminista no Brasil. Nesse período surgem as primeiras organizações de mulheres negras, nos quais Lélia atuará frontalmente. Embora fosse atuante no movimento de mulheres, Lélia o aborda de forma crítica e inaugura um eixo fundamental para o pensamento e prática feminista: a partir das mulheres negras, sem as essencializações, discriminações e apagamento comum ao feminismo branco.

Frente Negra Brasileira (FNB): Predecessor do MNU, Lélia difere ambos, ao afirmar “que apesar de seus esforços extraordinários, a FNB se tornou um instrumento de manipulação do governo de Getúlio Vargas por reproduzir seu nacionalismo autoritário e sua manipulação de massas”.

Interseccionalidade: Lélia interpreta o mundo articulando os aspectos sociais (econômicos e culturais) com raça e gênero, nutrindo suas reflexões com os conceitos históricos, sociológicos, filosóficos e psicanalíticos, além de sua própria experiência como mulher negra.

Movimento Negro Unificado (MNU): Fundado em 1978, o MNU “se define como um movimento político de reivindicação sem distinção de raça, sexo, educação, crença política ou religiosa, sem fins lucrativos. Seu objetivo é a mobilização e a organização da população brasileira em sua luta pela emancipação política, social, econômica e cultural [sic]. Tendo como ponto de partida seu programa de ação, tenta articular os problemas específicos dos negros com os problemas gerais do povo brasileiro”. (Lélia Gonzalez, 1985)

Mulheres Negras: Como intelectual, ativista e mulher negra, Lélia passa a interpretar e propor uma construção social que passasse pelas mulheres negras: como fundadoras de diversos aspectos e estruturas da sociedade brasileira. Ao se colocar em primeira pessoa e como uma pensadora política, Lélia provocava a “desencenssialização" dos estudos, a mulher negra sai da condição de objeto e passa a ser sujeito de sua história e práticas políticas socioculturais. São as mulheres negras que fundam o "pretuguês", ao “conscientemente ou não, ela passou para o brasileiro branco as categorias das culturas negro-africanas de que era representante. Foi por aí que ela africanizou o português falado no Brasil”.

Pan-africanismo: As diversas articulações intelectuais de Lélia e seu trânsito por diferentes países a levam ao movimento pan-africanista, movimento filosófico que defendia os direitos dos povos africanos por meio da criação de um Estado único. Lélia inspira-se nos teóricos pan-africanistas para questionar a construção do conhecimento apenas pelo viés eurocentrado; ao dialogar a produção intelectual e práticas sociais com teóricos negros, afrocentrar o pensamento.

Psicanálise: Lélia via na psicanálise uma forma de articular o pensamento sobre a construção da subjetividade da população negra e das mulheres negras em meio às opressões raciais. “Da psicanálise lacaniana [sic] vem a preocupação recorrente com o não dito, o interdito e a dimensão subversiva da linguagem no cotidiano, realizada sobretudo por mulheres do cuidado.”

Pretuguês: Ao articular a interpretação da sociedade brasileira com conceitos da psicanálise lacaniana, Lélia cria o conceito pretuguês. Para ela, a linguagem é importante constituidor de resistência da população preta, ao imprimir na língua do colonizador traços das línguas africanas e indígenas.

Racismo: Instrumento de opressão aos povos colonizados, construção ideológica que beneficia os brancos.

Quilombo: Espaços de resistência negra. O Quilombo dos Palmares foi a primeira tentativa de se construir uma sociedade democrática, uma experiência de República. "Com uma população constituída por negros, índios, brancos e mestiços, vivia do trabalho livre cujos benefícios revertiam para todos, sem exceção. Na verdade, Palmares foi o berço da nacionalidade brasileira.” (Lélia Gonzalez, 1982) 


PARA SABER MAIS

Lélia Gonzalez - Retratos do Brasil Negro
Selo Negro, 176 págs., R$ 31,90
Biografia lançada em 2010 revela a trajetória de vida, o trabalho e a luta desta intelectual brasileira.

Primavera para as Rosas Negras

Lélia Gonzalez, UCPA Editora, esgotado

Segundo informa a resenha produzida pela pesquisadora Renata Gonçalves para a revista Plural, do programa de pós-graduação em Sociologia da USP,  a coletânea reúne 45 textos, entre “cartas, relatos de viagem, depoimentos, debates, entrevistas e artigos acadêmicos que nos apresentam a extensão” da produção de Lélia.

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