Para se inspirar

Leve os sabores afro-brasileiros e de origem africana para a Educação Infantil

Como valorizar o bem viver, os saberes e a potência da alimentação de matriz africana e afro-brasileira com as crianças

Os educadores têm a possibilidade de explorar com os pequenos inúmeros aspectos da cultura afro-brasileira por meio das comidas. Ilustração: Flavia Borges/NOVA ESCOLA

Arroz, feijão, carne, frango ou peixe, legumes e um vegetal no almoço. No jantar, sopinha de legumes. Café da manhã e lanchinho: biscoito e suco. Este é o cardápio muitas vezes oferecido nas escolas brasileiras.

Mas a alimentação, para além de nutrir, também é um importante instrumento pedagógico, inclusive para os bebês e crianças da Educação Infantil. Isso porque, além de ampliar os horizontes alimentares dos pequenos, os sabores africanos e afro-brasileiros carregam história e ancestralidade.

Nesse sentido, a Lei nº 10.639/2003 abre aos educadores a possibilidade de explorar com os pequenos inúmeros aspectos da cultura afro-brasileira por meio das comidas – o ano todo.  

“Na infância, o educar e o cuidar são essenciais para que a criança tenha seu desenvolvimento integral [o que inclui a alimentação]”, reforça a chef Aline Chermoula, que também é historiadora e pesquisadora da alimentação da diáspora africana. “É papel da escola valorizar as diversidades, criando o sentimento de pertencimento étnico e cultural e promovendo a igualdade.”


Diáspora – Palavra de origem grega que significa dispersão. Designando, de início, sobretudo o movimento de judeus pelo mundo, hoje se aplica também à desagregação que, compulsoriamente, por força do tráfico de escravos e, mais recentemente, das péssimas condições de vida na África, espalhou negros africanos por todos os continentes. O termo Diáspora serve também para designar, por extensão de sentido, a comunidade de africanos e seus descendentes nas Américas e na Europa. 

Dicionário Escolar Afro-Brasileiro, de Nei Lopes, Selo Negro Edições, 2015 (pág.54)


A experiência no Quilombo de São Braz 

A professora Ivana Patricia de Jesus Bispo, de Salvador (BA), leciona há 15 anos e é uma das idealizadoras do projeto Preservando a herança cultural e costumes de nossa gente, alimentamos corpo e mente, no qual desenvolve atividades de incentivo, reconhecimento e valorização de produtos do Quilombo de São Braz, em Santo Amaro, cidade a 72 quilômetros da capital baiana. 

O objetivo principal do projeto, realizado no CEM Professora Ana Judite de Araújo Melo, que fica na comunidade remanescente do quilombo, foi a reformulação do cardápio escolar, a construção da horta comunitária e de um novo refeitório. Em 2020, a iniciativa foi uma das vencedoras do Prêmio Nestlé Crianças Saudáveis. 

“Busquei trazer referências negras para meu trabalho e impulsionar vidas negras a se perceberem como potência, reconhecer e valorizar suas raízes e se fortalecer para enfrentar o mundo de cabeça erguida”, explica Ivana. Atualmente, a educadora cursa pós-graduação em História e Cultura Afro.

A experiência em uma escola distante dos quilombos

Mas será que pensar, praticar um ensino étnico-racial é algo possível apenas às comunidades escolares em zonas rurais ou quilombolas? Durante uma formação sobre a temática étnico-racial, oferecida pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, a educadora Shirlei do Carmo mudou de perspectiva. Diretora da EMEI Chácara Sonho Azul, na Zona Sul da cidade, Shirlei levou para a escola outro olhar para a alimentação.

A equipe gestora desenvolveu um projeto de formação e pesquisa no qual foi estudada a origem dos alimentos, modos de cultivo,  de preparo, e os modos de comer. “Queríamos saber mais sobre alimentos típicos dos modos de comer de alguns povos originários [como os indígenas do Brasil], do encontro através da diáspora africana com os alimentos vindos da África, e os inseridos nos processos históricos através das movimentações migratórias na cidade de São Paulo", explica. 

Para Shirlei, a comida é um importante recurso e dispositivo de afetos. “Nesse mosaico cultural que conforma as identidades brasileiras, pensar os alimentos como elementos narrativos possibilita a participação de pessoas da comunidade que, muitas vezes, são invisíveis dentro da unidade de ensino”, diz. Shirlei conta que mães, avós e cuidadoras contaram para as turmas sobre suas memórias alimentares, enquanto funcionárias da escola envolvidas com a limpeza e a alimentação prepararam receitas com as crianças e tiveram seus saberes reconhecidos.

Nesse movimento, as crianças desenvolvem outros vínculos entre elas, com os adultos, com os alimentos e com o mundo onde vivem. Para entender de onde vem a comida, é importante que haja o plantio, o cuidado, a colheita, a preparação. As turmas, por exemplo, descascaram o milho sentadas numa roda e entregaram as espigas para as cozinheiras, que, no outro dia, cozinharam o alimento. “Assim, a criança já vai compreendendo acerca dos processos, da temporalidade, dos ciclos e dos fazeres coletivos”, reflete a diretora.

Para Ivana, a prática étnico-racial não se trata apenas de um cumprimento da Lei nº 10.639, mas um modo de trabalhar a “autoconfiança, a autoestima para ter forças e posicionamento neste mundo segregador, desigual e perverso”.

"No momento em que a escola compreende que a cultura fundamenta todos os nossos fazeres, e que cuidar e educar são indissociáveis, a introdução dos alimentos assume outra perspectiva”, diz Shirlei. “[A alimentação] resgata saberes ancestrais, de cuidado com a saúde, de ampliação do repertório cultural, de ressignificação do consumo e de práticas mais conscientes de descolonização do currículo escolar." Ao longo dos conteúdos desta Caixa, você conhecerá mais sobre alimentos, receitas e histórias das culturas alimentares afro-brasileira e africana.

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