Entrevista

Dona Carmem Virgínia: “Vivi minha vida toda dentro da cozinha ancestral”

Chef gastronômica fala sobre a importância dos sabores africanos

Para Dona Carmem Virgínia, a comida também é uma forma de expressar sua voz. Ilustração: Flavia Borges/NOVA ESCOLA

Nascida no Recife, a chef gastronômica Dona Carmem Virgínia é iyabassê (responsável pelo preparo dos alimentos sagrados no candomblé, função que ocupa desde pequena), dona do badalado restaurante Altar Cozinha Ancestral, pesquisadora e jurada do reality show Cozinheiros em Ação, do canal GNT. 

Na entrevista a seguir, Dona Carmem conta sobre a importância de buscar a ancestralidade africana na alimentação, do cumprimento da Lei nº 10.639/2003 pelas escolas e dos sabores que não podem faltar no prato. 

NOVA ESCOLA: Como você começou a cozinhar?

DONA CARMEM VIRGÍNIA: Comecei sem ser profissionalmente aos 14 anos, pois minha avó era merendeira [de escola pública]. A partir da cozinha de minha avó, aliada à cozinha do terreiro vizinho de minha casa, no qual eu fui escolhida para ser iyabassê [mulher consagrada a executar o banquete e oferendas aos Orixás no candomblé]. Ao ser nomeada iyabassê, eu vi que cozinhar era muito do mais que uma missão, um dom, ou qualquer outra coisa, mas que poderia ser o meio para que todos ouvissem minha voz.

Como você iniciou a pesquisa por uma cozinha ancestral?

Eu não pesquisei, eu vivi toda a vida dentro da cozinha ancestral. Apenas tomei sentido do que me pertencia de fato e resolvi focar na cozinha por pura vocação e vivência.

Quais ingredientes e pratos que fogem das referências coloniais que podem ser adotados no cotidiano?

Todas as nossas comidas sagradas podem ser amplamente adotadas no dia a dia.

Qual a importância de se pensar uma prática gastronômica étnico-racial?

Está em entender as heranças que nosso povo deixou para a formação da cozinha brasileira, é a reparação histórica também na gastronomia, já que somos por muitas vezes subestimados nas nossas técnicas seculares. Não que a gastronomia francesa não pode ser [considerada] a mãe da gastronomia, mas a ancestralidade africana vem antes disso. Vem de milênios e precisamos que essa informação seja dita e reverenciada, desde a infância nas escolas, através da implementação da Lei nº 10.639/2003.

Qual a dificuldade de se praticar essa culinária étnico-racial?

A mão de obra, o jeito de fazer e a história de como começou a comida de rua no Brasil nos dão a certeza de que ao longo de todos esses anos mais uma vez fomos roubados em nossos saberes com quase nenhum reconhecimento do nosso papel de protagonismo junto com a [culinária] europeia e a indígena.

Qual ingrediente e prato não podem faltar, quando pensamos em culinária afro-brasileira?

Não podem faltar a cor, o refogado, os molhos ensopados, o tempero apurado, pimentas, o feijão-fradinho e o feijão-preto, o gengibre, o curry, a mistura de temperos que dão cor aos nossos pratos, o jeito de tirar o leite do coco, o camarão seco, somos muito mais do que azeite de dendê (ingrediente importante na nossa culinária).

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