Para repensar a prática

Os caminhos para os gestores praticarem e estimularem uma Educação Antirracista

O que significa ter atitude decolonial? Como olhar criticamente para as dimensões escolares para criar um ambiente que valorize a diversidade e a identidade negra e indígena? Especialistas explicam qual o papel dos gestores para fortalecer as relações étnico-raciais na escola

Ilustração abstrata de mulher lendo livros, enquanto galhos e folhas nascem de seus cabelos.
Ilustração: Yara Santos/NOVA ESCOLA

Criar uma matéria só para tratar das relações étnico-raciais, investir em projetos esporádicos e em celebrações da consciência negra no mês de novembro ou levar movimentos sociais para a escola sem contextualizá-los. Essas são algumas ações equivocadas de gestores para cumprir a legislação que prevê o ensino obrigatório da história e da cultura afro-brasileira (conheça as Leis 10.639 11.645) e que não constroem o necessário: a promoção da equidade racial por meio de práticas contínuas no ambiente escolar. 

“Um dos empecilhos para a não consolidação da lei é o posicionamento do gestor, que muitas vezes não dá importância ou não se forma para a questão. É necessário conhecer documentos nacionais e propostas internacionais para entender os paradigmas mundiais do trato da diversidade”, explica Rosa Margarida de Carvalho Rocha, especialista em Estudos Africanos e Afro-brasileiros, Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e consultora deste Box.  

Trabalhar com consistência a Educação para Relações Étnico-Raciais (ERER) perpassa todas as etapas escolares. “É preciso romper a compreensão da temática como complemento e reconhecer que a ERER está imbricada nos fazeres pedagógicos da escola”, diz Jussara Nascimento dos Santos, responsável pelo Núcleo de Relações Étnico-Raciais da Secretaria Municipal de São Paulo. Segundo Jussara, o primeiro desafio dos educadores é que nem todos encaram com honestidade o fato de que vivemos em um país racista. “Em consequência disso, há um silenciamento. É preciso admitir que nossa sociedade é atravessada pelo racismo estrutural.”

Para que se consolide uma Educação antirracista na escola, a proposta de intervenção deve ser fruto de construção coletiva, o que exige tempo, esforço e determinação dos gestores. “Antes ainda do diagnóstico, tem uma fase que já deveríamos ter ultrapassado, que é a da sensibilização, pois só ela envolve e incentiva as equipes”, ensina Rosa Margarida. 

Em 2006, ela atuou como coordenadora pedagógica de uma escola na periferia de Belo Horizonte, com maioria de estudantes negros e professores recém-chegados de escolas particulares. “Organizei um café étnico-racial por semana. No recreio dos professores, levava comidas africanas, cartazes com perguntas provocadoras e livros para manusearem. Um dia, passei um vídeo, em outro, trouxe uma pessoa para conversar.”

Tudo foi uma preparação para as etapas seguintes (veja um resumo no quadro a seguir). Neste Box, Rosa Margarida, membro do Fórum Nacional de Educação Básica da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros e Negras, compartilha referências e modelos primorosos para que os gestores cuidem de diagnóstico, plano de ação e avaliação da Educação para as Relações Étnico-Raciais em suas escolas. 

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Etapas para inserir a ERER na escola


1. Realizar a sensibilização da equipe pedagógica. 

2. Fazer um diagnóstico da escola. 

3. Encaminhar discussões com fundamentação teórica e estimular reflexões para desenhar um plano de ação.

4. Iniciar a consolidação das práticas, em articulação com o projeto político-pedagógico, o regimento escolar, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e documentos municipais ou estaduais, e construir um currículo e protocolos escolares para a ERER. 

5. Conduzir uma avaliação (do plano de ação e do processo de implementação). 

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Atitude decolonial revela-se nas práticas cotidianas

Escolas que levam à frente projetos de valorização da diversidade étnico-racial buscam respostas a um modelo focado na história da Europa e enfrentam a chamada colonialidade do poder. “Esse é um conceito contemporâneo que serve como ferramenta racional para compreender e transformar a realidade”, analisa a socióloga e educadora Priscila Elisabete da Silva, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), que atua com formação de professores na temática das relações étnico-raciais. Segundo ela, ter uma atitude decolonial inclui tomar consciência de que todo o conhecimento dos colonizados (e dos escravizados) foi inferiorizado, deslegitimado, negado, subjugado, desumanizado. 

“Para enfrentar esse sistema e oferecer novas respostas, o papel dos gestores é importantíssimo. São eles que movimentam a mudança cotidiana, que não é uma questão teórica, e sim, prática”, defende Priscila. Segundo ela, cabe desconstruir a hierarquia, identificar que todos possuem experiências a serem partilhadas e incentivar a complementaridade de saberes na escola. A formadora defende o potencial de comunidades de aprendizagem. “Compartilhar experiências difíceis e preconceitos vivenciados toca um lado sensível das pessoas e estimula a empatia. Criar um ambiente saudável e de confiança para todos falarem, se ouvirem e ajudarem uns aos outros fortalece o conjunto e leva à troca de dicas e informações”, explica Priscila, que se identifica com o pensamento da ativista americana bell hooks

A mesma autora inspira os estudos de Janaína Dias Felipe, coordenadora do núcleo de estudos para relações étnico-raciais da regional noroeste de Belo Horizonte. A funcionária da Secretaria Municipal de Educação enviou à reportagem o seguinte trecho do livro Ensinando a Transgredir: A educação como prática de liberdade, de bell hooks: “Descobrir conhecimentos subjugados e tomar posse deles é um dos meios pelos quais as histórias alternativas podem ser resgatadas. Mas, para transformar radicalmente as instituições educacionais, esses conhecimentos têm de ser compreendidos e definidos pedagogicamente, não só como uma questão acadêmica, mas como questão de estratégia e prática.” 

Discutir a problemática étnico-racial e estratégias testadas nas escolas é rotina na rede de Belo Horizonte, que tem 500 unidades de Educação básica. Há grupos de estudos sobre o tema há mais de 15 anos. Desde 2017, são nove, um para cada regional de Educação. “Temos pelo menos 800 profissionais participando dos núcleos de estudos mensalmente. São professoras e integrantes das equipes gestoras que repassam informações e levantam questões em suas escolas”, descreve Janaína. Toda coordenadora pedagógica que insere a temática étnico-racial na discussão curricular influi na realidade dos estudantes. 

Um currículo decolonial, que desconstrói os estereótipos e restitui identidades apagadas, mostra as origens africanas e devolve potência aos estudantes negros. Em 2020, propostas pedagógicas com literatura afro-brasileira, africana e indígena geraram o desejo de conhecer mais sobre o tema nas crianças e em suas famílias. Oficinas de percussão africana e de turbantes resgataram a representatividade e identificação negra em uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Isso é fruto desse olhar empático, voltado para a mulher negra que é arrimo de família e precisa de condições para retomar os estudos”, conta Janaína. 

“Só se levanta para ensinar aquele que se sentou para aprender” 

O título acima é um provérbio africano citado por Fabiana Régis de Oliveira Souza, atual vice-diretora que há dez anos atua na gestão da Escola Municipal Professor Hilton Rocha, no Barreiro, periferia de Belo Horizonte. “Fui convidada a participar do núcleo de estudos em 2015, pela funcionária da biblioteca, pois ali fazíamos projetos com temáticas étnico-raciais”, conta. Inicialmente, Fabiana ficava em silêncio nos encontros, observando e ouvindo, se questionando como contribuir para a discussão. “Só depois de muito estudo e de provocar dezenas de reflexões com a equipe pedagógica da escola é que hoje eu digo: 'tenho um lugar de fala de mulher branca nas discussões de ERER'”, conta Fabiana, uma mulher loira, de pele clara.

É desafiador promover mudanças de comportamento e de cultura no ambiente escolar. Os docentes presenciam situações de preconceito e de injúria racial, mas a maioria sente-se despreparada para agir. “Tive professoras que diziam não dar conta de fazer um trabalho antirracista porque são brancas. Promovi círculos de discussão com a prática restaurativa para sensibilizar e envolver”, explica a gestora.

A Hilton Rocha apostou na formação de professores nos últimos três anos e incentiva reflexões e replanejamento constante. Uma pesquisa realizada há dois meses mostrou a percepção embranquecida dos estudantes – dos 622, apenas 50 se declaram pretos, 411 pardos e 192 brancos – o que coloca em xeque o trabalho com a identidade e provoca a equipe a repensar o currículo.

“Não é um caminho fácil, mas falar do tema é falar em direitos humanos, em Educação ética e de valores. Cabe a nós decidir qual escola queremos construir e como ela contribui para o território e para as famílias”, destaca Fabiana. O papel dos gestores inclui observar em que medida os espaços escolares acolhem as múltiplas vivências e as pessoas dentro deles. Jussara, mulher negra que cuida das relações étnico-raciais na SME paulistana, conclama que não é preciso ter sentido o racismo na pele para tomar atitudes. “A ERER não é exclusiva de escolas com estudantes negros, mas, sobretudo, onde existe gente racista que precisa compreender que não tem de ser. Não é responsabilidade da pessoa negra, mas de todos que se dizem educadores.”


Para saber mais 
Sites e publicações que são boas referências para gestores

Livro Ensinando a Transgredir: A Educação como prática de liberdade, de bell hooks, Ed. Martins Fontes, 2013

Coleção Que História É Essa?, de Rosa Margarida de Carvalho Rocha (confira aqui)

Artigo "O potencial de práticas decoloniais na formação docente", de Priscila Elisabete da Silva (confira aqui)

Site Rede Nea Onnim, com materiais de referência, pesquisa e práticas pedagógicas da rede municipal de Belo Horizonte (confira aqui)

LEI Nº 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003

LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008

Área do site do CEERT sobre a  Lei nº 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (confira aqui)

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