Entrevista

Carlos da Silva Jr.: “É preciso ampliar o espaço da história africana na formação dos professores”

Especialista em patrimônio e história afro-brasileira, historiador critica a concentração exclusiva do tema em novembro e defende o engajamento de toda a sociedade em prol do antirracismo

Carlos considera perigoso restringir as ações de valorização da cultura afro-brasileira a novembro. Ilustração: Ana Cardoso/NOVA ESCOLA

Promover uma educação antirracista que coloque a história e a cultura afrobrasileira em igualdade com qualquer outra história e cultura dos diversos povos que habitam esse planeta. Esta é a visão do historiador Carlos da Silva Jr., uma das principais vozes da atualidade sobre o assunto resgate do patrimônio e da história afro-brasileira. 

Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, mestre pela Universidade Federal da Bahia e doutor pela University of Hull, na Inglaterra, o historiador é um dos idealizadores do projeto Salvador Escravista, que identifica lugares que prestam homenagem a pessoas que defenderam a escravidão ou traficaram, mas também, marca os locais de memória e resistência. O projeto tem o selo de apoio da Unesco, que estimula iniciativas que promovam a história da escravidão como um vetor para a memória e a educação. 

Para uma educação antirracista de fato, Carlos considera perigoso restringir as ações de valorização da cultura afro-brasileira a novembro. “Parece ser o mês para limpar consciências. Aí todas as ações preconceituosas, racistas, ou não antirracistas que cometidas durante o ano todo podem ser apagadas nesta oportunidade. A escola precisa estabelecer um quadro mais amplo”, acredita. Mas a escola não pode fazer o trabalho sozinha: “As instituições precisam garantir que a história afro-brasileira seja contada. Do contrário, é bater no muro sem conseguir transpô-lo. Sozinha, a escola não consegue fazer toda a desconstrução”, defende. 

Confira os principais trechos da entrevista concedida por Carlos da Silva Jr. a NOVA ESCOLA.

NOVA ESCOLA: Qual a sua avaliação acerca da inclusão do ensino de história e cultura afro-brasileira na Educação Básica? Quais os maiores desafios?

Carlos da Silva Jr.: Ainda temos o problema de como transpor do aspecto legal para os livros didáticos. As mudanças que acontecem na produção do conhecimento histórico são mais rápidas que o processo de chegada desse conhecimento aos livros didáticos. Mesmo que estejamos em outro ponto nos nossos trabalhos historiográficos, os livros didáticos ainda, em algum medida, continuam a reproduzir falácias e visões preconceituosas que dão pouco protagonismo às populações negras e indígenas. 

Este é um primeiro desafio, o de construir mecanismos para que a lei de fato consiga se consolidar, justamente porque a gente tem essa dificuldade de transpor com rapidez o que é produzido na academia para a sala de aula.

Então, no livro didático ainda nos deparamos com as culturas africana, afro-brasileira e indígena sendo jogadas para o território do folclórico, o que não seria um problema se o folclore não fosse entendido como uma espécie de cultura menor, um aspecto cultural que é levado à dimensão do exotismo. 

Acho que o grande desafio é desmitificar a ideia de que as culturas africanas, as tradições culturais afro-brasileiras e indígenas sejam vistas como folclore, e isso para mim é um desafio que a gente tem de enfrentar.

Como a escola pode ajudar a desconstruir e desmitificar o que é dado sobre as culturas africana e afro-brasileira? Não só considerando o conteúdo didático, mas também, olhando para o papel da escola de forma mais abrangente.

É preciso estabelecer uma articulação entre as universidades e as escolas. A gente precisa levar em consideração que a maior parte dos estudantes que saem do curso de História não vai para academia, vai dar aula nos ensinos Fundamental e Médio, então é preciso pensar na formação. 

A História da África é trabalhada em apenas um semestre, enquanto a história da Europa vai ser falada na Antiga, Medieval, Era Moderna e Contemporânea, são quatro anos em que se vê a história da Europa em diferentes períodos. A história africana vai ser resolvida em 15 semanas. 

É preciso ampliar o espaço da história africana, da história das populações afro-brasileiras, já na formação dos professores. É preciso também que as universidades se articulem com as escolas em iniciativas para promover uma educação antirracista que coloque a história e a cultura afro-brasileiras em igualdade com qualquer outra história e cultura dos diversos povos que habitam esse planeta. 

A diferença em como a história africana e a europeia é vista nos ensinos Fundamental e Médio chega à formação superior, porque se a gente não tem uma boa base, desconstruir isso na universidade é um trabalho brutal. 

O terceiro ponto é não restringir as ações a novembro. Uma coisa que considero muito perigosa é que novembro parece que - e eu vou usar essa terminologia porque acho que ela é importante - ser o mês para limpar consciências. Aí todas as ações preconceituosas, racistas, ou não antirracistas, que cometidas durante o ano todo podem ser apagadas nesta oportunidade. 

A escola precisa estabelecer um quadro mais amplo para que a discussão sobre antirracismo, sobre culturas africanas, sobre história e cultura afro-brasileira seja frequente e não se restrinja a um mês.

Em 80 anos de existência, o Iphan tombou pouco mais de 3,8 mil bens materiais, mas apenas 13 dizem respeitos à cultura afro-brasileira, o que mostra uma falta de reconhecimento institucional. Qual a importância de reconhecer formalmente mais patrimônios como esses?

Primeiro de tudo, é necessário o reconhecimento de que a mão de obra africana, depois afrodescendente, é a base da construção deste país no período colonial, depois no império e até hoje, porque a maior parte da força de trabalho é de pessoas negras. 

Reconhecer esse patrimônio em larga escala é reconhecer que essa população é que levantou essas construções tombadas. Depois, esse reconhecimento, que ainda é bastante tímido, demonstra como o Estado brasileiro pensa o patrimônio, do que o Estado brasileiro considera patrimônio e merece preservação. Esse é outro problema que tem a ver justamente com essa lógica que rege o Estado. 

A cultura afro-brasileira não é reconhecida como cultura de fato, ela é sempre lançada para o terreno do folclore. Um exemplo são as religiões afro-brasileiras, que têm recebido mais atenção nos últimos anos, mas é um tipo de reconhecimento que depende de quem está no governo. É só pensar, por exemplo, na Fundação Palmares: a partir de 2003 houve amplo reconhecimento das terras quilombolas e das tradições afro-brasileiras, mas depois, com a virada do governo, isso mudou completamente. Então não se trata de uma política de Estado, é uma política que navega ao sabor dos governos. 

E o patrimônio imaterial? Como reconhecê-lo, valorizá-lo e levá-lo para a sala de aula?

Falando das religiões afro-brasileiras, por exemplo, é preciso fazer com que os alunos entendam que elas simplesmente pertencem a outras tradições que não a judaico-cristã, incutindo nos estudantes a ideia de que elas têm um conteúdo cultural e histórico que tem a ver com a resistência de uma população que foi escravizada, trazida à força nos porões dos navios negreiros e que, naquele ambiente muito hostil da sociedade brasileira escravista, a religião, os deuses africanos, foram uma forma de fortalecimento numa dimensão espiritual. Assim como outros povos se agarram às suas tradições religiosas como forma de resistência, a população africana também fez isso. 

Quando a gente consegue demonstrar essa dimensão, já é um grande passo. Precisamos entender isso como um aspecto da história e da cultura, independentemente do ponto de vista religioso. Se a gente fizer um trabalho de base, podemos conseguir. Mas não dá para fazer trabalho de base sem uma articulação com a família. Você pode ser o melhor professor do mundo: se falar isso de manhã e à tarde, mas à noite o aluno receber um bombardeio de ideias preconceituosas é muito complicado. É por isso que não dá para resumir as ações ao "novembro negro".

Como trabalhar o patrimônio histórico com as crianças ajuda a preservar e transmitir a cultura afro-brasileira?

É justamente fazendo o reconhecimento de que a cultura africana é parte da cultura afro-brasileira. Se a gente não começa daí, nenhum tipo de iniciativa é bem-sucedido. Se as pessoas acharem que cultura afro é outra coisa, não adianta. Uma alternativa é encontrar mecanismos para que os alunos vejam esse patrimônio. 

E que patrimônio? Não é simplesmente uma estátua de Zumbi, que é um patrimônio importante, ou uma igreja que foi construída pela população negra. Mas tem a rua, um bairro onde a população negra construiu sua sociabilidade. Levar os alunos para conhecerem esses lugares, por exemplo, mostra como a população negra, mesmo em cidades de maioria branca, tinha, mesmo no período escravista, espaços de sociabilidade, onde se podia circular e discutir temas de seu interesse. 

É importante também marcar esse tipo de coisa, falar de patrimônio em um sentido mais amplo, não apenas a partir do que o Iphan identifica. Tem o patrimônio que está nessa dimensão do imaterial, do que não é tombado, mas que presta esse serviço. 

Todos os espaços onde a população negra circulava, construía sociabilidade, onde construía redutos, quilombos urbanos, tudo isso é espaço de discussão. Se a gente consegue fazer com que as escolas consigam dialogar com isso é um caminho muito importante. 

Agora, isso também precisa ser feito do ponto de vista institucional. As instituições também precisam garantir que essa história afro-brasileira seja contada. Do contrário, é bater no muro sem conseguir transpô-lo. A escola sozinha não consegue fazer toda a desconstrução: você precisa da ferramenta educacional, mas o Estado precisa contribuir e participar desse processo, senão é uma luta de Davi contra Golias e, ao contrário da história bíblica, eu duvido muito que Davi consiga vencer esse Golias, porque é um sistema que oprime e todo dia bombardeia. 

Se a gente consegue trabalhar com os estudantes, primeiro o reconhecimento desses instrumentos, de que a cidade que eles vivem tem uma tradição negra, e depois disso contruir uma ideia de luta antirracista que englobe todos, entender que o racismo é um problema da sociedade brasileira, aí sim, teremos boas chances de sucesso.  

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