ENTREVISTA

Lourenço Garcia: “A escola foi praticamente revolucionada”

Na entrevista, o educador cabo-verdiano Lourenço Garcia conta sobre a influência das ideias de Paulo Freire na escola pública americana Revere High School, que transformou a evasão e os baixos índices em aprendizagem e reconhecimento

Ilustração de Paulo Freire em sala com alguns adultos.
Ilustração: Nathalia Takeyama/NOVA ESCOLA

Nascido em Cabo Verde e radicado nos Estados Unidos desde 1995, o educador Lourenço Garcia é ex-diretor da Revere High School, escola pública americana na cidade de Boston reconhecida pela diversidade (há muitos alunos imigrantes e em situação de vulnerabilidade) e pela qualidade da Educação ofertada.

A frente da escola entre 2010 e 2018, Lourenço operou uma verdadeira revolução no modo de ensinar e aprender - tudo isso inspirado pelo pensamento do brasileiro Paulo Freire.

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Paulo Freire, pensador internacional


Paulo Freire é o terceiro autor mais citado mundialmente em pesquisas acadêmicas da área de humanas, segundo a plataforma Google Scholar. Pedagogia do Oprimido, seu livro mais célebre, já foi citado quase 73 mil vezes, deixando para trás nomes como Michel Foucault. Os números trazem uma dimensão da enorme influência das ideias do pensador brasileiro sobre profissionais e pesquisadores da Educação em todo o mundo. 

Além de estar presente em outros países de Língua Portuguesa, há um centro de estudos com o nome de Paulo Freire na Finlândia, país apontado como caso de sucesso nos índices educacionais, bem como livros publicados em mais de 20 idiomas. Nos EUA, há uma forte corrente de escolas que colocam ênfase no ensino centralizado no aluno, o que também dialoga com as ideias de Freire.

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Ao trazer para a Educação a reflexão sobre as condições de vida e existência, bem como o desejo de transformá-las, Paulo Freire criou o que ficou conhecida como Educação Crítica.

De acordo com esta concepção, a educação deve ser capaz de promover a autoconfiança, além de ser crítica, conscientizadora e libertadora, com o objetivo de ampliar a visão de mundo e a participação ativa do indivíduo em todas as esferas da vida em sociedade.

Ao educador, cabe mostrar ao educando que ele já possui conhecimentos oriundos das suas experiências e auxiliar na organização deles, relacionando-os com os saberes escolares. Com isso, o aluno melhora progressivamente sua autoestima e consegue participar mais ativamente do processo de aprendizagem. Consequentemente, há maior autonomia e perspectiva de participação ativa na sociedade.
Na prática, Freire elaborou um novo paradigma de ensino, no qual a troca e a valorização de saberes entre educadores e educandos levam a uma aprendizagem democrática e inclusiva. Uma nova forma de aprender e ensinar que inspira educadores do mundo inteiro.

Um deles é justamente Lourenço Garcia, hoje superintendente de Equidade e Inclusão da Revere High School. Quando começou a se aprofundar no que dizia Paulo Freire, ele confessa que ficou “um bocado rebelde”, no melhor sentido da palavra. 

O educador cabo-verdiano Lourenço Garcia.
O educador cabo-verdiano Lourenço Garcia. Foto: Reprodução/Twitter

A transformação da escola, realizada em parceria com a comunidade, fez com que em cerca de três anos a instituição transformasse evasão e baixos índices de aproveitamento em prêmios de reconhecimento.

O primeiro foi em 2014, quando a Revere foi escolhida a melhor escola de Ensino Médio dos Estados Unidos pelo National Center for Urban School Transformation (Centro Nacional para Transformação de Escola Urbana), entidade vinculada à Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia, em reconhecimento à metodologia que alia a autonomia do aluno ao uso de novas tecnologias. Dois anos depois, tornou-se uma das oito medalhistas do "Schools of Opportunity" (Escolas de Oportunidade), do National Education Policy Center (Centro Nacional de Educação Política), por "fazer coisas extraordinárias para os estudantes".

A Revere High School tem cerca de 2 mil alunos entre 15 e 18 anos. Pouco mais de um terço deles são de famílias de baixa renda e 12% são imigrantes, que muitas vezes frequentam a escola falando pouco ou nada da língua inglesa. A realidade de vida dos alunos, que num primeiro olhar parecia ser empecilho para o desenvolvimento pleno da aprendizagem, foi abraçada por Lourenço para transformar a escola.

O educador, mestre e doutor pela Universidade de Massachusetts, teve seu primeiro contato com o pensamento freiriano ainda em Cabo Verde, sua terra natal. Mas foi já em meados dos anos 1990, ao iniciar o mestrado nos Estados Unidos, que Lourenço se aprofundou. “Tive curiosidade de realmente entender todo o pensamento filosófico de Freire, que é baseado numa filosofia centrada no aluno e numa ideia, de fato, de libertação de controle por parte do professor em relação ao estudante”. Ao se deparar com a realidade da Revere High School, 15 anos depois, veio a oportunidade de colocar em prática seus estudos de Paulo Freire.

A ideia central foi construir uma cultura de melhoria contínua da escola, trabalhando com professores, alunos e pais para criar e manter um sistema baseado na colaboração, justiça, consistência e altas expectativas para motivar todos os estudantes a atingirem seu potencial. A instituição foi reestruturada em diversas frentes, com o desenvolvimento de liderança compartilhada e tomada de decisão colaborativa, o que envolveu o corpo docente na implementação de uma nova aprendizagem baseada no aluno, que trouxe como resultado, também, a inclusão com respeito à diversidade.

NOVA ESCOLA conversou com Lourença Garcia, que encontrou um espaço em sua agenda para uma chamada de vídeo em meio ao corre-corre da retomada do ensino presencial por lá. Afinal, as realidades podem não ser tão diferentes quanto se imagina.

A seguir, confira os principais  trechos da entrevista.

NOVA ESCOLA: Como foi seu contato com o pensamento de Paulo Freire? 

Lourenço Garcia: Tive contato com o pensamento de Paulo Freire ainda em Cabo Verde. Mais tarde estudei na Rússia (bacharelado em Ciência na Escola Avançada de Estudos de Odessa). Eu era muito estudioso e lia muito Paulo Freire, que tem um pensamento progressista e com base na filosofia construtivista. Quando vim para os Estados Unidos, já em 1995, fiz um mestrado na Universidade de Massachusetts e tive curiosidade de realmente entender todo o pensamento filosófico do Freire, que é baseado numa filosofia centrada no aluno e numa ideia, de fato, de libertação de controle por parte do professor em relação ao aluno.

Foi aí então que comecei a entender realmente o que Freire dizia com isto: Freire concentra-se no fato de que tem que haver uma libertação da parte do professor em relação ao aluno para que o aluno seja um agente dinâmico no processo do ensino e aprendizagem. E que o aluno também é considerado um agente muito importante em toda esta dinâmica. Portanto, isso contraria toda a filosofia tradicional, que vê o professor como o elemento mais importante na sala de aula.

E, de fato, ganhamos. Porque o aluno nesta perspectiva não é algo vazio, uma tábua rasa, alguém que não pensa. Vários livros falam do professor como o agente cultural que promove a transformação das escolas para que o aluno realmente seja valorizado, um agente valorizado no processo de ensino e aprendizagem. Quando comecei a entender tudo isso, comecei a ser um bocado rebelde. Mas no bom sentido da palavra, de não me conformar com a educação tradicional, que prejudicava os alunos que vêm da classe pobre, desengajados, alunos com medo, com essa intimidação. Porque muitas vezes a metodologia tradicional realmente acaba por intimidar o aluno que perde a motivação. Isso tem consequências graves, como o abandono da escola e situações de violência que acabam por criar problemas para a sociedade em geral.

Quando comecei a perceber isso, a questionar muitas coisas que eram tidas como verdades, quando iniciei o trabalho com professores no sentido de utilizar a concepção freireana como o elemento transformador da consciência dos professores. Passei a introduzir algumas reformas escolares, sobretudo quando me tornei diretor. Imagina a reação ao tentar implementar algumas dessas ideias freireanas: muitas vezes fui chamado de comunista, de socialista. Muitos professores tinham medo de perder esse controle sobre o aluno. Freire realmente advoga por uma pedagogia muito mais próxima do aluno, muito mais construtivista. Abrimos espaço para formação, leitura e palestras para de fato formar toda a comunidade escolar. Portanto, foi com o tempo, não foi de uma vez, que começaram a ganhar uma nova conscientização e toda essa filosofia centrada no aluno ganhou força. 

Como Paulo Freire é recebido aí nos EUA? 

Paulo Freire tem conquistado cada vez mais espaço hoje em dia nos Estados Unidos, porque Freire realmente advoga por uma educação mais reflexiva, com base no respeito mútuo e com base no fato de que o conhecimento do aluno também é levado em conta quanto se ensina na sala de aula. Por isso, deu-se um grande salto qualitativo na Revere High School. Era uma escola considerada com pouco aproveitamento escolar, com alunos abandonando a escola, mas ganhou novo ímpeto, que agora recebe visitas de escolas de outros estados. A escola foi praticamente revolucionada, com ideias novas, novas metodologias, o aluno valorizado, com voz no processo de aprendizagem. É o que eu considero justo, o profissional ouve. De fato há ainda muito trabalho a ser feito, mas foi um salto progressista, e eu digo que Paulo Freire e seus ensinamentos têm muito a ver com isso.

Como foi o processo de aplicação da filosofia freiriana na Revere High School? Como outras escolas podem aplicar essas ideias? 

A primeira coisa é fazer uma análise das estruturas escolares: a estrutura curricular, a estrutura dos cursos oferecidos e quais as mudanças que realmente devem ser feitas. A estrutura que existe na escola acaba por acomodar a mudança que se quer fazer. Se a estrutura não é adequada, há que se trabalhar com o professor para mudar. A segunda medida é a mudança do pensamento crítico do professor. Será que o professor realmente está disposto ou tem a motivação para fazer a mudança que se quer na escola? Para isso se usa os líderes escolares e os diretores e todo o pessoal deve se envolver em uma mudança de objetivos e até de crenças no pensamento pedagógico. Realmente há que haver muita conversa, muito diálogo, muita preparação. Um investimento sério na preparação dos professores porque são eles que todos os dias estão na frente dos alunos, são eles que preparam os alunos. Será que existe essa predisposição por parte do aluno, do professor? E aqueles que lideram o processo acadêmico da escola, estão dispostos? Há motivação? Há entendimento coletivo por parte de todos os que estão na escola? É preciso também dinheiro para fazer esses tipos de reforma, para investimento especialmente em tecnologia.

Como os professores receberam a ideia de mudar a prática pedagógica da escola? 

Antes de introduzir de fato a filosofia freiriana passei um ano praticamente a convencer os professores que este era o caminho ideal para a implementação. Trouxe especialistas, pessoas com formação nesta área para  formar os professores. Toda essa preparação do professor é fundamental nesse processo. Se a gente não preparar a escola, não se criar uma cultura para que a escola se sinta vocacionada para esse tipo de mudança, é impossível. Há de se preparar toda a comunidade escolar, também os pais, que estão habituados a uma certa rotina, de créditos escolares, por exemplo. Chegar e dizer: “quero fazer e acabou”, como imposição, vai contra toda a pedagogia freiriana. Temos que trabalhar com os professores e transformá-los em trabalhadores culturais que entendem o processo e que contribuem para toda a mudança que se quer. Portanto é isso que eu acho que deve ser feito nas escolas, preparar a  estrutura e fazer com que os professores entendam o que é a filosofia freireana, o que é o ensino centralizado no aluno, o que é a pedagogia personalizada, os valores, as ideias, as perspectivas e as vozes dos alunos no processo de ensino e aprendizagem. 

No cotidiano da escola, no que que ela se difere das escolas tradicionais?

É completamente distinta das escolas tradicionais. É uma mudança de paradigma, de uma forma radical. Temos alunos de 16, 17, 18 anos e, sobretudo neste contexto da adolescência, é tudo diferente daquilo que nós aprendemos nos anos 30, 40, 50 ou 60. Não podemos impor o ensino, há de se realmente dialogar para engajá-los no processo. Portanto, isso é uma viagem, é uma cultura totalmente diferente da cultura que se vê numa escala tradicional, onde o aluno acaba por simplesmente obedecer a conceitos predefinidos pelo professor, onde ele dita e faz o que quiser, e quando é indagado ele penaliza o aluno com nota. Portanto, é um novo ensino e os dividendos são claros, porque o clima da escola é melhor, o aluno entende que é valorizado e o professor entende que a filosofia está funcionando. Há menos abandono escolar, mais engajamento por parte dos alunos, um processo colaborativo. Quando bem implementado, os dois agentes do ensino e aprendizagem, o aluno e o professor, todos acabam ganhando. 

Com tantos resultados evidentes na melhora da aprendizagem, por que as ideias de Paulo Freire não estão em mais escolas? 

Eu não sei porque muitas escolas ainda não adotaram ou são contra essa filosofia. Freire é estudado em África, sobretudo a nível dos países de língua oficial portuguesa. Eles estimam Paulo Freire. E Paulo Freire é altamente estudado nas universidades, até mesmo aqui nos Estados Unidos. Já há uma forte corrente nas escolas americanas que colocam ênfase no ensino centralizado no aluno. Isto é a filosofia freireana, foi exatamente isto que Freire defendeu durante todo o seu percurso como filósofo, professor, didático, como um dos maiores pensadores do século XX na área da educação. Portanto, eu acho que as escolas tradicionais que não empregam esse tipo de pedagogia têm muita coisa a aprender e de fato estão perdendo.

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