Quem foi Paulo Freire? Conheça 4 momentos que marcaram a biografia do educador
Da infância difícil ao projeto de alfabetização de adultos, da perseguição política e do exílio ao reconhecimento internacional, a trajetória do pensador é fundamental para entender suas ideias e ideais
O pernambucano Paulo Freire revolucionou a pedagogia ao propor uma nova forma de ensinar e aprender, baseada numa troca genuína de saberes entre educadores e educandos. Sua própria experiência com a educação e vivências pessoais são pontos de partida para compreender a gênese do pensamento que inspira professores e gestores escolares de todo o mundo 52 anos depois da primeira publicação de Pedagogia do Oprimido, seu livro mais célebre.
NOVA ESCOLA conversou com o escritor Sérgio Haddad, biógrafo de Paulo Freire e autor de O Educador: Um perfil de Paulo Freire, que nos ajudou a escolher quatro momentos fundamentais de sua trajetória. Confira:
Infância e formação
Paulo Freire nasceu no Recife (PE) em 1921, em uma família de classe média. Iniciou seus estudos no Colégio 14 de Julho, no Centro da cidade. Na transição entre a infância e a adolescência, porém, ele vivenciou a pobreza. A crise de 1929 fez com que a família se mudasse para Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife.
Segundo Haddad, é ali que ele se torna um menino preocupado com as condições de vida dos seus colegas, pois houve um rebaixamento da situação econômica de sua família. Em 1934, o quadro agravou-se com a morte do pai e coube à mãe a responsabilidade de sustentar os quatro filhos. A família volta para o Recife e, sem condições de pagar os estudos do filho, sua mãe pediu ajuda ao diretor do Colégio Oswaldo Cruz, que lhe ofereceu uma bolsa de estudos, transformando-o em auxiliar de disciplina e, posteriormente, em professor de Língua Portuguesa.
Sérgio Haddad destaca que a infância é um momento muito importante na vida de Paulo Freire. “Ele viveu a pobreza, mas conviveu com jovens de outra classe social, de classe média. Brincou e desenvolveu a sua personalidade nesse começo de vida”, destaca. Foi no Oswaldo Cruz, uma escola de elite, que Freire concluiu seus estudos. Haddad conta que houve grande esforço dele para acompanhar a escola, mas também uma valorização de si mesmo perante os colegas ao se destacar mesmo sendo de outra classe social. “Eu diria que esse é um momento importante na vida dele para valorizar a escola por um lado, a boa formação, e também pela opção que ele vai ter posteriormente pelos mais pobres”, destaca Haddad.
Em 1943 Paulo Freire ingressou na Faculdade de Direito do Recife. Depois de formado, continuou atuando como professor de Português no Colégio Oswaldo Cruz e de Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco. Em 1947 foi nomeado diretor do setor de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria. Em 1955, juntamente com outros educadores fundou, no Recife, o Instituto Capibaribe, escola inovadora que atraiu muitos intelectuais da época e que continua em atividade até hoje.
Experiência de alfabetização de adultos em Angicos (RN)
No início dos anos 1960, preocupado com o grande número de adultos analfabetos na área rural dos estados nordestinos – que formavam, consequentemente, um grande número de excluídos –, Paulo Freire desenvolveu um método de alfabetização que levava em conta a realidade vivida pelos educandos.
A iniciativa do educador foi aplicada pela primeira vez em 1963 na cidade de Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte, quando foram alfabetizados 300 trabalhadores da agricultura em apenas 40 horas. O projeto ficou conhecido como “Quarenta Horas de Angicos”. Sua proposta de ensino estava baseada no vocabulário do cotidiano e da realidade dos alunos: as palavras eram discutidas e colocadas no contexto social do indivíduo. Por exemplo: o agricultor aprendia a ler e escrever palavras como cana, enxada, terra, colheita etc. A partir das palavras-base é que se iam descobrindo novos termos e ampliando o vocabulário. Os alunos eram levados, ainda, a pensar nas questões sociais relacionadas ao seu trabalho.
Haddad explica que a experiência em Angicos é consequência de todas as experiências anteriores, profissionais e de vida de Paulo Freire. Ainda em 1947, ele inicia sua carreira de advogado, mas desiste para se tornar educador no Sesi, onde trabalha diretamente com operários e seus filhos, desenvolvendo boa parte da sua experiência pedagógica. Depois vai para a Universidade do Recife e começam as primeiras experiências de assessoria a governos: foi assim na Paraíba e no Rio Grande do Norte, primeiro em Natal e depois em Angicos. “Importante também lembrar que ele milita no movimento de cultura popular, iniciando uma forte relação entre educação e cultura que mantém para o resto da vida, pois é nesses movimentos que ele vai buscar a perspectiva da Educação no âmbito da cultura”, reforça Haddad.
A experiência de Angicos marcou a vida de Freire, não só pelo sucesso do projeto, mas porque ela foi amplamente divulgada pelo governo do Rio Grande do Norte, que convidou o então presidente da República, João Goulart, para ministrar a última aula. Em meio à tensão política que precedeu o golpe civil-militar de 1964, fazendeiros da região chamavam o processo educativo de “praga comunista”. Portanto, há uma importância tanto política quanto pedagógica, que advém do fato de ser um processo rápido de alfabetização, mas que também ampliava a consciência dos alunos em relação aos seus problemas, pois era todo baseado nos saberes dos camponeses.
Exílio e escrita de Pedagogia do Oprimido
Com o golpe de 1964, a então recente experiência em Angicos acabou por resultar na perseguição a Paulo Freire. Segundo Haddad, uma campanha ampla de alfabetização ampliaria fortemente o número de eleitores, o que poderia atingir em cheio a dinâmica dos currais eleitorais (à época, os analfabetos não tinham direito ao voto). Além disso, o método de Paulo Freire era de uma alfabetização conscientizada: não só aumentava o número de eleitores, como também dava a eles uma consciência crítica ampliada, despertando a atenção dos grupos conservadores que viam nele um perigo. Após o golpe, Paulo Freire foi acusado de agitador e preso por 70 dias. Depois de ser libertado, exilou-se no Chile, onde durante cinco anos desenvolveu trabalhos em programas de educação de adultos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária.
Foi no Chile que Freire encontrou um contexto de mais estabilidade que permite a ele escrever seu livro mais relevante, Pedagogia do Oprimido, publicado apenas em 1969. Segundo Haddad, Pedagogia do Oprimido é o livro mais importante sob o ponto de vista da sua repercussão internacional. O livro propõe uma pedagogia com nova forma de relacionamento entre professor, estudante e sociedade e continua popular entre educadores no mundo inteiro por ser um dos fundamentos da pedagogia crítica.
O livro foi escrito aos poucos, com anotação de ideias e conversas com as pessoas que cercavam o educador: “Em certo momento, Freire acaba por sentar para escrever três capítulos, que ficam guardados até que ele retoma o processo e acha que precisa fazer um quarto capítulo”, conta Haddad. Do Chile, Freire vai para os Estados Unidos, em 1969, onde leciona na Universidade Harvard, e Pedagogia do Oprimido é publicado.
Durante os dez anos seguintes Freire foi consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Municipal das Igrejas, em Genebra, na Suíça. O educador viajou por vários países, dando consultoria educacional, num total de mais de 150 viagens. Nos últimos cinco anos desse período, ele desenvolveu na África uma grande experiência junto a governos de ex-colônias de Portugal, promovendo uma educação decolonial e refletindo sobre as questões da colonização.
Redemocratização e reconhecimento internacional
Com a Lei da Anistia, Paulo Freire retorna ao Brasil em 1980, estabelecendo-se em São Paulo depois de breve passagem pelo Recife. Em Santiago, no Chile, as ideias freirianas começam a ser propagadas e inicia-se o reconhecimento internacional, que se amplia após a publicação de Pedagogia do Oprimido, traduzido rapidamente para diversas línguas. “Essa dimensão internacional plena acontece não só porque o livro atendia muitas das necessidades dos trabalhos de educação na América Latina e em outros continentes, mas também, porque Pedagogia do Oprimido se tornou um instrumento muito importante para o trabalho das pastorais, em especial nessa época de força da Teologia da Libertação”, explica Haddad.
Durante a redemocratização, Freire foi convidado por dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, para lecionar na PUC-SP. O educador foi também professor da Unicamp e atuou como secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luísa Erundina, em 1989. “É um período de redemocratização do Brasil, mas para Paulo Freire é um período de redescoberta do país depois do exílio de 16 anos”, afirma Haddad. “Ele viaja pelo país numa importante peregrinação a partir dos convites que recebe para olhar os trabalhos de Educação popular e, ao mesmo tempo, conhecer a realidade brasileira, já que é coerente ao seu pensamento não intervir em uma realidade que ele desconhecia.”
Para saber mais:
O Educador: Um perfil de Paulo Freire, de Sergio Haddad. Ed. Todavia, 2019.
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