“Os meninos precisam falar, ouvir e elaborar a violência contra a mulher”
Psicólogo e sociólogo Flávio Urra, coordenador de programa que atende homens condenados pela Lei Maria da Penha, confia que a forma mais eficaz de quebrar o ciclo da violência é conversar e garantir a perenidade do trabalho
A violência contra as mulheres cresceu na pandemia
De acordo com a pesquisa Sem Parar: O trabalho e a vida das mulheres na pandemia, organizado pelo site Gênero e Número em parceria com a ONG Sempreviva, 8,4% das mulheres afirmaram ter sofrido alguma forma de violência no período de isolamento. Perguntadas sobre a percepção: 91% acreditam que a vida de meninas e mulheres está mais vulnerável às agressões.
Pouco lembrados quando olhamos para as estatísticas da violência contra a mulher no Brasil, os meninos em idade escolar são parte essencial da conversa - e a escola é fundamental para iniciar o assunto.
PONTO DE ATENÇÃO: Violência contra a Mulher é assunto sério, delicado e desafiador. Sempre procure estudar e falar com cuidado ao abordá-lo, além de buscar conhecer seus próprios limites e direitos sobre o tema, bem como os das mulheres à sua volta. É essencial tratar do assunto de forma direta, embasada por informações oficiais e de especialistas. Se precisar, pesquise e troque com outras educadoras de sua confiança. Para algumas pessoas, o tema é sensível e pode causar sofrimento psíquico – se acontecer, procure ouvir sem julgar, acolher e buscar orientação.
Por muito tempo, assumiu-se que os meninos são, naturalmente, mais violentos do que as meninas. Mas a verdade é que esse comportamento tem mais a ver com a forma como os rapazes são socializados do que eles precisam em termos de um desenvolvimento saudável, e o que os educadores podem fazer para atendê-los de forma mais apropriada.
Disponível na Netflix, documentário The Mask You Live In (A máscara que você veste) aborda esforços de educadores americanos para abrir o diálogo sobre a masculinidade tóxica e o efeito perverso dela para meninos e homens
Esperamos que os meninos sejam ensinados a chorar, a pedir colo, a cuidar das outras pessoas, a tratar meninos e meninas da mesma forma, com respeito, como iguais, e a serem responsáveis e se preservarem. A resolver seus conflitos com diálogo e abraços, que rejeitem e renunciem à prática da violência e que sejam mais leves e felizes.
Então, por que alguns homens se tornam violentos? Sabemos que o machismo mata e que é produzido e reproduzido pela maioria das pessoas. Como podemos resistir a isso também como educadoras? E, por fim, como iniciar este diálogo tão complexo?
Mudar a forma como educamos e percebemos meninos não é tarefa fácil, mas é necessária para a mudança de aspectos negativos de algumas formas de masculinidade. É um exercício central se queremos uma sociedade livre da violência, em especial, da violência contra a mulher.
O psicólogo e sociólogo Flávio Urra, coordenador do programa E Agora José, que atende homens condenados pela Lei Maria da Penha, confia que a forma mais eficaz de quebrar o ciclo da violência é conversar com os meninos em todas as etapas, e garantir a perenidade do trabalho.
Flávio conversou com NOVA ESCOLA e explicou acerca desse tipo de trabalho, quais as abordagens mais apropriadas e também deu dicas e estratégias para replicar. Confira:
NOVA ESCOLA: Como esse tipo de trabalho, sobre masculinidades, que é um assunto mais ou menos novo, chega até as escolas?
FLÁVIO URRA: Quando vou com o programa E Agora José nas escolas, vou em parceria com o professor que já esteja engajado com os alunos. Então, já chego em uma sala com alunos interessados, participativos. O efeito é bem menor quando vamos para uma conversa muito pontual e geral, com cara de palestrona. Causa pouca reflexão.
Existem estratégias mais apropriadas, formas melhores de abordagem?
Uma das estratégias é trabalhar com materiais diversos. Indico um muito bom chamado Minha Vida de João, que está disponível on-line. Ele conta a história de um adolescente, e como foi o processo de ele se tornar homem. O filme pega muitos aspectos da masculinidade.
Dica de Flávio é diversificar os materiais para iniciar o diálogo. Uma das indicações é o curta de animação Minha Vida de João, de Gary Barker Gênero, lançado em 2001
O desenho fala da pressão para que os meninos namorem as meninas, do estímulo à violência, da repetição de comportamento, de violência mesmo, com a mãe do menino que sofre uma situação de violência, e depois ele, quando se tornar adolescente, repete a cena de violência com o pai. E aí é abrir o diálogo, perguntar o que eles acham. Costuma ter uma participação muito forte das meninas e dos meninos gays, ou meninos mais tranquilos com a masculinidade.
Outra estratégia muito boa, essa para os menores, é trabalhar com os contos de fadas. Tem um chamado João de Ferro, que fala sobre masculinidade. Conta a história e abre para discussão, eles podem fazer um desenho, fazer uma roda de conversa. É uma boa entrada para conseguir a atenção dos meninos.
E os outros meninos, como fazê-los participar?
Os meninos que fazem mais o estereótipo do machão costumam ficar muito quietos, e é preciso provocar. Para eles é mais difícil, porque eles estão se esforçando para acreditar nesse modelo de masculinidade-padrão, e a gente chega com um modelo totalmente diferente. Mas a mensagem também chega. E aí a melhor entrada para falar do assunto é falar da violência contra a mulher.
Porque eles dizem que são contra a violência a contra a mulher. Ninguém fala “tem de agredir mesmo”. A gente explica que o objetivo do trabalho é esse, e isso ameniza a conversa.
Então, é possível envolver a todos?
Eles gostam muito de participar. Gosto muito dos modelos de oficinas. Quando conseguimos fazer um trabalho sequencial, e não só a tal da palestra, assim a gente consegue provocá-los a pensar. A base de todo esse trabalho é a reflexão. Eles têm de falar, ouvir e elaborar.
Um dos temas das oficinas, por exemplo, é falar de homens que influenciaram o seu jeito de ser homem. Eles falam do pai, do tio, irmão, colega, e falamos do comportamento, como eles são.
São impressionantes as histórias. Surgem tanto meninos que relatam situações de violência quanto as meninas. Quase sempre alguma menina relata um abuso sexual que já sofreu. O assunto aparece, algumas meninas começam a chorar e fazem o relato. Por isso é importante ter esse professor já engajado. É o que permite continuar o trabalho, que vai se desdobrando.
Essa escuta para os meninos é muito importante, não? Muitas vezes eles nem sequer entendem que o seu comportamento é violento ou abusivo.
Esse diálogo com os meninos precisa ser feito aos poucos. Mas uma das abordagens é a da aprendizagem. Tudo o que aprendemos sobre violência e sexualidade é feito no grupo de meninos. Tem meninos com nove anos de idade, que não estão prontos ainda biologicamente para a sexualidade, mas a pornografia chega para ele. E os meninos mais velhos inserem esse menino em brincadeiras sexuais. Eu já ouvi vários relatos de abusos sexuais nessas brincadeiras infantis. E com os meninos é importante estar atento para esse fator: para eles, tudo é brincadeira. Se eles estão se batendo, é uma brincadeira. Se eles estão abusando sexualmente, é brincadeira. É uma sexualidade que educa de forma muito perversa.
Como esse comportamento de os meninos se fecharem em um grupo só de meninos influencia na violência contra a mulher?
Isso é uma inferiorização da mulher. Ali, os iguais são os meninos. Que também não são tão iguais assim, porque entre eles tem uma hierarquia. Os meninos mais espertos ou mais velhos se aproveitam dos mais bonzinhos, ou os que têm alguma deficiência, ou fragilidade emocional, que sofrem com esses grupos.
Tem histórias de meninos que formam rodas onde um é sorteado para apanhar, e qualquer que se recuse a bater apanha junto. Isso é como se fosse uma brincadeira, uma prática normal. Tudo isso é bem da idade escolar.
Por isso, dialogar com os professores e alunos pode incidir muito sobre a violência. Pode tirar pessoas da violência, procurando ajuda, e evitar agressões futuras. Muitos homens condenados pela Lei Maria da Penha, que participam de grupos de discussão sobre masculinidade, falam que se tivessem participado de um grupo como esse antes não teriam cometido a violência que cometeu.
E os mais velhos se abrem para questionar sua masculinidade e comportamentos?
A porta de entrada para fazer o menino refletir é a violência contra a mulher.
À medida que se faz a discussão, os assuntos vão aparecer. O que pode mudar esse cenário de violência contra a mulher é ter essa discussão como plano escolar. Que o professor de Matemática, História e Geografia falem sobre isso. Daí surge a necessidade de fazer formação específica. Há um tempo tínhamos um programa nacional chamado ‘Quem ama abraça’, e usávamos nas escolas.
Quando temos isso sistematizado, com a secretaria de ensino pedindo para os professores fazerem o curso, legitimamos o tema. A escuta do professor dessa forma é melhor. Ele ouve, ele replica e passa a vivenciar.
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