Desigualdade de gênero, raça e renda deve ser combinada ao olhar para evasão escolar, defende Sandra Unbehaum
Para a pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, meninas sofrem vulnerabilidades específicas, mas meninos negros e pobres são maioria a abandonar a escola
“A pandemia coloca tintas mais fortes na desigualdade estrutural que já existe. Há razão de haver um foco nas meninas, mas precisamos olhar também para os meninos.” Foi assim que a socióloga Sandra Unbehaum, coordenadora do Departamento de Pesquisas Educacionais e vice-lider do Grupo de Gênero, Raça, Trabalho e Direitos Humanos iniciou a conversa que teve com NOVA ESCOLA sobre evasão escolar de meninas.
Se é fato que são as garotas as mais vulneráveis às violências doméstica e sexual, além de recrutadas para o trabalho doméstico - fatores que pioram com a pandemia e o fechamento das escolas - a mesma crise leva os meninos ao mercado de trabalho precocemente. “Precisamos tratar, de fato, a questão de gênero como algo que afeta os meninos também”, afirma Sandra, que em sua trajetória acadêmica se dedicou a pesquisas sobre masculinidades.
O contexto agrava-se quando o fator raça é incluído na equação. São os meninos as maiores vítimas do racismo estrutural das escolas, algo já apontado por pesquisas desde os anos 1990. Segundo a pesquisadora, as meninas, de modo geral, tendem a ter um comportamento que se enquadra melhor na cultura escolar, e os meninos não necessariamente. “O racismo estrutural é cruel com os meninos negros. Quando a gente fala do impacto da pandemia e do impacto da desigualdade de gênero, precisamos olhar também para a questão racial”, pontua.
Confira a entrevista que Sandra Unbehaum concedeu a NOVA ESCOLA.
NOVA ESCOLA: Como a crise atual, em razão da pandemia, afeta a vida das meninas?
SANDRA UNBEHAUM: A pandemia não afeta só a vida das meninas, mas também, a dos meninos. Mas as desigualdades de gênero acirram-se em um contexto de pandemia. Em momentos de crise, os desafios que elas já enfrentam ao longo da vida, os desafios que nós, mulheres, vivemos, se acirram. E no contexto atual, aqui no Brasil, isso ganha outra dimensão, mas não para todas as meninas e mulheres. Há um recorte de renda, socioeconômico, que afeta diferentemente as meninas e as mulheres brasileiras. No Brasil de hoje, a gente pode falar que as questões religiosas pesam bastante para reproduzir a desigualdade de gênero, e as questões de renda e pobreza, também. Porque as meninas que têm suporte familiar e econômico são afetadas diferentemente das meninas que não têm esse suporte.
É importante demarcar esse aspecto para não generalizarmos a questão das meninas. Mas isso não quer dizer que elas não sofram com questões socioeconômicas, desigualdade de gênero, com a gravidez não planejada, o abuso sexual e também o preconceito e a estigmatização. Isso é estrutural na nossa sociedade. O impacto da pandemia vai ser completamente diferente para as meninas dos segmentos sociais mais desfavorecidos.
Objetivamente, quais são esses impactos?
Famílias que estão passando por necessidades econômicas vão usar todo o potencial do seu grupo familiar para buscar meios de subsistência. Entre estudar e trabalhar, ou ir para a rua, para os semáforos pedir ajuda, a escolha será a segunda opção. E isso vale para meninos e meninas. Se os pais têm algum trabalho e têm crianças menores, com a ausência de serviços públicos para atender em creches as crianças menores, as crianças maiores vão cuidar das menores. Isso impacta o processo de escolarização das meninas (dos meninos em menor proporção). Isso já faz parte da rotina da vida das famílias mais vulneráveis, mas se acentua na pandemia quando toda uma estrutura social não está voltada a olhar para essas questões.
Por isso, políticas que possam garantir o mínimo de subsistência são fundamentais. Agora, qual é o maior impacto que eu vejo em relação a esse contexto atual? Nós tínhamos uma cultura de escola presencial até o começo de 2020. A tecnologia também estava restrita às escolas. A grande maioria das famílias, embora possuam celular, não têm acesso à estrutura necessária para a aula remota. Nesse sentido, a nossa desigualdade social e econômica ganha outra dimensão, porque o acesso digital é pífio, este se reduz às pessoas terem celulares, mas não à estrutura necessária para realmente ter uma aula de qualidade. Isso não afeta só as meninas, afeta também parte das profissionais de educação. E eu estou falando no feminino, porque 90% dos profissionais que atendem a educação básica são mulheres.
A questão da estrutura afeta substancialmente esse grupo de pessoas. Tem a divisão sexual do trabalho, que faz com que as meninas e as mulheres ainda assumam as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos. O número de horas dedicadas ao trabalho doméstico é predominantemente exercido pelas mulheres. As mulheres não cuidam só das crianças, cuidam dos idosos. Você tem um acúmulo de jornada. E o fato de trazer a escola para dentro de casa intensifica essa jornada, afetando sobretudo as mulheres e as meninas.
A outra questão é a violência contra as mulheres e as meninas e o abuso sexual.
E quais os impactos ao olharmos para as alunas e alunos negros?
Quando você coloca o recorte racial, tudo piora para as meninas negras e, principalmente, para os meninos negros. Já nos anos 90, a pesquisadora da Faculdade de Educação da USP Marília Pinto de Carvalho apontava, ao fazer a análise das desigualdades de gênero na educação, que os meninos negros são aqueles que têm os piores indicadores educacionais, tanto de evasão e abandono quanto de desempenho. Os meninos sofrem maior preconceito, racismo nas escolas, do que as próprias meninas. Porque as meninas, de modo geral, tendem a ter um comportamento que se enquadra melhor na cultura escolar, e os meninos não necessariamente.
O racismo estrutural é cruel com os meninos negros. Quando falamos do impacto da pandemia e do impacto da desigualdade de gênero, precisamos olhar também para a questão racial. Quando você olha para os dados de mortes por causas violentas, são os homens jovens negros que mais morrem. E nas escolas, os piores indicadores são os dos meninos. Isso precisa ser posto para entender a importância de se trabalhar a interseccionalidade de gênero e raça na Educação. Sem considerar também toda a questão que vai afetar as pessoas trans, lésbicas e gays.
O que podemos aprender com as crises do passado no que diz respeito ao impacto na educação das meninas?
A crise que estamos vivendo é permanente. Mas quando olhamos para momentos específicos, epidemias em outros países, acho que a gente não aprendeu. Assim que superarmos essa pandemia, devemos fazer uma análise muito profunda do que ela visibilizou, o que ela gritou, que são essas desigualdades econômicas estruturais. Uma política de Educação que acolha essas meninas e esses meninos de tal maneira que eles de fato tenham uma assistência específica, que não basta só colocá-los em sala de aula, mas que eles possam ter um auxílio efetivo no contraturno. A possibilidade de aprendizado que foi perdida no último ano, e que provavelmente vai acontecer neste ano, precisa de reparação. É uma reparação social porque essas crianças e adolescentes são vítimas de uma desigualdade enorme que os impede de darem continuidade mínima ao seu aprendizado.
Quais são as principais medidas que escolas e professores podem tomar para evitar que essas meninas deixem a escola?
A busca ativa é uma estratégia importante para saber o que está acontecendo com as crianças e adolescentes que estão fora da escola. Ainda estamos recolhendo elementos para aprofundar um estudo de abandono e evasão, então eu não sei se ela está sendo efetiva. O que eu tenho certeza é que as dificuldades devem ser imensas também na busca ativa. Pense em uma crise econômica de desemprego, o telefone que está cadastrado na escola pode não estar atendendo, pode não existir mais. Nem todas as crianças e jovens moram exatamente no bairro da escola.
O Brasil tem uma estrutura na área da Saúde graças a muita luta de movimentos sociais. Nós temos o SUS, que tem uma capilaridade incrível. O programa Saúde da Família, com os agentes comunitários de saúde. Onde esse programa funciona, os agentes conhecem muito bem a sua comunidade. Em geral, tais agentes costumavam ser pessoas da comunidade. Pensa que interessante seria ter um trabalho intersetorial, articulado, entre Saúde e Educação, que pudesse contribuir nessa busca ativa, de identificar quem está fora da escola. Eles têm o registro das famílias, têm o número de filhos. É a importância do trabalho intersetorial, você teria de envolver agora Assistência Social, Saúde, Educação e Segurança. Com isso você conseguiria fazer esse acompanhamento.
Mas falta estratégia política. A busca ativa depende de condições ideais para isso. Não dá para dizer que as redes não estão preocupadas com isso, o problema são as condições adequadas. Porque uma criança que já enfrentava dificuldades anteriores à pandemia, essa é a estudante que terá mais resistência em voltar ou será mais difícil de trazer de volta. Ela deveria ser privilegiada em uma busca ativa. É a mais vulnerável e precisa ser a primeira a ser resgatada em um pensamento de justiça social e equidade.
O que podemos esperar da Educação das meninas depois de um ano em que elas estão afastadas da escola? Como isso deve afetar o futuro dessas meninas?
Eu acho que nós vamos ter uma noção desse impacto daqui a 2, 3 ou 4 anos, conforme acumularmos dados via Censo Escolar. Precisamos de dados para medir esses efeitos, de muitas pesquisas para ter elementos para dizer o quanto essa situação afetou a vida das meninas e dos meninos. O que a gente sabe é que as desigualdades e vulnerabilidades já estavam postas e foram acirradas. Então a gente sabe que a desigualdade de gênero e de raça vai permanecer na educação por um bom tempo sem políticas e estratégias adequadas para mitigar e superar essas desigualdades. Quem tem maior acesso às políticas públicas e mais recursos econômicos vai ter sempre melhores oportunidades de seguir adiante em sua escolarização e no desenvolvimento profissional que vai garantir melhor inserção no mercado de trabalho. Vai exigir uma vontade política gigantesca, que não pode ser pífia, não pode ser uma política pobre para pobre, ela precisa ser muito bem planejada, um desejo genuíno de mudança social e econômica para que a gente possa superar essas desigualdades.
Mais sobre esse tema