A leitura de mulheres como estratégia de incentivo à literatura
Conheça duas experiências que adotaram a diversidade como forma de aproximar os alunos do mundo dos livros
No Ensino Fundamental 2, a leitura perde espaço na vida escolar dos estudantes em comparação com os anos iniciais, marcados por leituras coletivas e mais espaço para discutir as histórias. Assim, em regra, não há um acompanhamento do aluno que está saindo dos livros infantis para as obras de maior fôlego. Em muitos casos, as crianças e os adolescentes acabam se afastando da literatura.
Para combater esse movimento, dois projetos de professoras dos anos finais do Ensino Fundamental apostam na diversificação dos autores oferecidos aos alunos - e, principalmente, na leitura de mulheres.
Em São Paulo, mulheres imortais
A rede municipal de São Paulo mantém um projeto chamado Academia Estudantil de Letras (AEL), cujo objetivo é promover a leitura e a discussão de textos literários e, a partir desses estudos, os alunos pensam em como transpor essas narrativas para a linguagem teatral. Os encontros acontecem no contraturno e são voltadas para alunos do 3º ao 9º ano. Em geral, as atividade tem duração de 1 hora e 30 minutos e acontecem duas vezes na semana: um dia reservado para a leitura e outro com foco em teatro.
Na EMEF Antenor Nascentes, a professora Laura Guimarães é responsável pelos estudos literários. Neste ano, a turma que ela acompanha no projeto tem 25 alunos que estão entre o 4º e o 9º ano. Ao escolher o que leva para os alunos, a docente prioriza a diversidade. "Fui formada numa escola tradicional, mas hoje consigo ter um olhar diferente. Eu olho para a diversidade com muito mais cuidado. Gosto de discutir essas questões, de provocar", conta Laura.
O projeto se inspira para valer na Academia Brasileira de Letras (ABL). Os autores eleitos pelos alunos ocupam cada um uma cadeira, e a primeira é ocupada pela patrona. Na escola de Laura, é Heloisa Pires Lima, escritora gaúcha e negra. As demais cadeiras são ocupadas por autores e autoras escolhidos sempre no começo do ano (nada impede, porém, que outros nomes sejam eleitos ao fim do período letivo). Atualmente, há 35 cadeiras na escola, ocupadas por nomes como Ana Maria Machado, Ziraldo, Ruth Rocha, Agatha Christie, Shakespeare e Lygia Bojunga, entre outros.
Cada aluno escolhe o seu amigo literário: um dos autores da AEL para se aprofundar enquanto estiver participando do projeto. Se, por exemplo, um estudante do 6º ano escolheu a cadeira da escritora Ruth Rocha, ele estudará a história e as obras da autora até terminar o 9º ano. Só aí a cadeira de Ruth Rocha ficará disponível para outro aluno.
Esse trabalho dos amigos literários acontece em paralelo aos encontros semanais, em que a professora escolhe e discute outros textos literários (saiba como funciona um encontro da Academia Estudantil de Letras, clicando aqui).
Em Brasília, mulheres inspiradoras
A professora Gina Vieira Ponte ficou famosa ao criar, em 2014, o projeto Mulheres Inspiradoras (NOVA ESCOLA contou essa história aqui). Gina queria promover na escola em que trabalhava, o CEF 12, em Ceilândia (DF), a valorização das mulheres incluindo, nas suas aulas, as obras de diversas autoras brasileiras e estrangeiras. Mas a iniciativa deu tão certo que, em 2017, extrapolou a sala da professora e se tornou política pública nas escolas do Distrito Federal.
Foi assim que os professores Gleiser Valério e Anelise Barcelos participaram da formação oferecida pela rede e levaram o projeto para suas turmas de 9º ano do CEF 31, também em Ceilândia.
Para começar o ano, os educadores propuseram com as turmas discussões sobre a Lei Maria da Penha e a violência contra mulheres. Em seguida, trabalharam poemas do livro Não Vou Mais Lavar os Pratos, da escritora carioca Cristiane Sobral.
Durante um mês, duas aulas por semana estavam reservadas para o trabalho com a obra. Anelise e Gleiser separaram as turmas em grupos, propuseram a leitura e a análise dos poemas e, depois, toda a turma debateu os textos. “As discussões foram muito intensas, principalmente quando tocaram na questão do machismo, do assédio, na questão da mulher negra, da autoestima, do preconceito”, relata Gleiser. Para encerrar o bimestre, os alunos fizeram uma produção textual sobre o poema com o qual mais se identificaram. "Todos os alunos participaram, relataram vivências próprias. Muitos ficaram emocionados", relata Anelise.
No terceiro bimestre, as obras escohidas pelas professoras foram Quarto de Despejo, da escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977), e Diário de Anne Frank, na qual a jovem alemã judia, que viveu entre 1929 e 1945, conta os horrores do nazismo. Para fazer a leitura do primeiro livro, as turmas do 9º ano se dividiram em duplas, cada qual ficou responsável por contar uma das partes do relato da autora. Durante as apresentações, os estudantes compartilhavam o que mais havia chamado a atenção durante a leitura, viam fotografias relacionadas ao texto e conversavam sobre a narrativa. Já o trabalho com o segundo livro teve, além da leitura e discussão, a produção de uma carta de resposta para a autora.
Para finalizar o ano, cada aluno escolheu uma mulher inspiradora da família ou da comunidade para entrevistar e criar uma narrativa relatando a vida daquela mulher.
No início do ano, Gleiser percebeu que os encontros na sala de aula não eram suficientes para esgotar o que os alunos queriam discutir. Por isso, ele teve a ideia de criar rodas de leitura no contraturno. "Pensei que não daria certo, mas eu só tinha a ganhar. Eu tinha 21 livros, então teria 21 vagas. Não imaginei que teria esse tanto de gente interessada", lembra o professor. Mais de 40 alunos pediram para participar dos encontros, que tinham como foco conversar sobre cada livro. "Eles partiam de um conhecimento prévio [construído em sala de aula]. Levavam o livro para casa e eu pedia para que eles anotassem o que queriam conversar", conta.
Com rodas de leitura lotadas, o grupo - majoritariamente formado por meninas - discutiu diversos assuntos, da representação da mulher negra ao nazismo. Na conversa sobre Diário de Despejo, outra obra de Carolina Maria de Jesus, os alunos falaram da situação da mulher brasileira e favelada dos anos 1960, das dificuldades da periferia e do contexto político da época que o livro retrata, durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961).
Mas não foram só os adolescentes que pararam para refletir. O professor também utilizou as leituras e os encontros para pensar sobre o seu papel. "Como professor, tenho alunas que precisam de alguém para ir junto. O meu papel era de ouvir", diz Gleiser.
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