Para usar com os alunos

Saiba conduzir uma análise literária na sala e baixe um conto de Clarice Lispector

Os questionamentos precisam estar relacionados com a obra escolhida e as falas dos alunos. Confira dicas de perguntas que podem orientar a discussão

Ao analisar as marcas do autor, uma estratégia possível é relacionar a história com a vivência do aluno. Ilustração: Ana Raquel

Não existe fórmula mágica para incentivar a leitura na escola. Para Bruna Paiva de Lucena, pós-doutoranda em Linguística Aplicada na Universidade de Brasília (UnB), a estratégia é levar o texto para a sala de aula, ler para os alunos e propor uma discussão, na qual o professor ocupa o papel de mediador. Mas o que observar nesses textos? Quais discussões cabem? 

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de Língua Portuguesa prevê, no 6º ano, que os alunos desenvolvam a seguinte habilidade:

EF69LP44: Inferir a presença de valores sociais, culturais e humanos e de diferentes visões de mundo, em textos literários, reconhecendo nesses textos formas de estabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas e considerando a autoria e o contexto social e histórico de sua produção. (p. 157)

Ler dessa maneira inclui notar de que maneira o gênero do autor (no caso aqui, gênero feminino) deixa marcas de autoria. Marcelo Ganzela, coordenador do curso de Letras do Instituto Singularidades e professor de Didática da Literatura Infantojuvenil, explica: “O mundo é interpretado pelo olhos das pessoas, por uma visão subjetiva. Foi-nos ensinado que a visão masculina era uma visão neutra, mas não é. Começamos a perceber que existem outras formas de perceber as relações, as famílias, os sentimentos. Quando os alunos leem autores dentro da diversidade, entram em contato com visões diferentes de mundo”. 

Por essa razão, além de ter diversidade de autores e obras apresentadas, é necessário abrir espaço na sala de aula para analisar essas marcas de autoria. 

Uma primeira estratégia fazer com que os alunos partam da própria vida para pensar sobre as histórias. “Mostre que ele pode ser um crítico desse texto e que pode comparar a sua narrativa com a do livro”, afirma Bruna.

Para perceber as marcas mencionadas pela BNCC, é preciso incentivar que os estudantes a prestar atenção na forma como as ações se desenrolam e em como os personagens são apresentados, entre outros aspectos. O papel do professor é ser o mediador, ou seja, trazer questionamentos que permitam aos alunos debaterem.

É claro que essas perguntas precisam se relacionar com o texto escolhido, de modo que não é possível estabelecer um modelo padronizado. No entanto, os especialistas elencam alguns pontos que não podem escapar: 

- Perguntas iniciais: onde, como e quando se passa essa história? O que essa obra conta para nós? Existe algo que causa incômodo, sente falta de algo ou há algo que mais chama sua atenção?

- Perguntas sobre os personagens: há um equilíbrio entre as personagens masculinas e femininas? Como está representada a questão racial? 

- Perguntas sobre o autor: Quem escreve? Qual a história desse autor? O que ele já escreveu?

- Perguntas sobre a relação do aluno e com o texto: Como essa história se relaciona com a sua vida? O que é parecido e o que é diferente? 

- Comparação com outras narrativas: Se existirem outras obras que os alunos conhecem parecidas com a história que acabaram de ler, é possível propor uma comparação entre essas narrativas. É interessante levantar também se existem filmes, músicas, obras de arte que se relacionem com o livro de alguma forma (que tenham a mesma temática ou que sejam adaptações do texto).

Elizabeth Cardoso, professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, dá um dica extra: "Se o professor sentir uma apatia nos alunos [ao trazer os primeiros questionamentos], ele pode preparar questões que os estimulem a falar de si, se eles se enxergam na história". Segundo Elizabeth, os estudantes dificilmente resistem a essa estratégia. 

Um exemplo real

Se você, professor, está pensando em começar a trabalhar com literatura, a professora Laura Guimarães, da EMEF Antenor Nascentes, em São Paulo, sugere: ler, não ter medo do que o aluno vai trazer e dividir a própria experiência de leitura com os alunos. “Eles têm uma necessidade de falar. Também não ter medo de dividir suas impressões de leitura com eles. Não adianta pedir que façam algo que eu não faço”, relata a professora.

Ao pensar no seu planejamento para o encontro de sexta-feira antes do Carnaval, a professora escolheu levar o conto Restos do Carnaval, de Clarice Lispector, para discutir com a turma. Clique abaixo para baixar o conto selecionado pela professora:

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Laura tinha imaginado, no planejamento, fazer uma discussão acerca das "máscaras" que vestimos socialmente e como esses papéis que são interpretados, algo que aparece no conto da Clarice quando a personagem diz querer crescer rápido para se tornar moça. Outro ponto era a questão dos sentimentos que se relacionam à época de Carnaval, os quais estão associados com animação e alegria, enquanto, na narrativa da autora, a personagem estava triste e preocupada pela doença da mãe.

Era sexta-feira, pré-carnaval, entre meio-dia e 13h30. A professora Laura começou o encontro com avisos gerais da Academia Estudantil de Letras (AEL) e sobre o texto que os alunos precisarão produzir para um livro que comemora os 15 anos do projeto.

Formou-se uma roda de conversa e a professora perguntou sobre o Carnaval, sobre as lembranças que a turma tinha, se gostavam da festa, sobre os blocos de rua que ocupam a cidade e os desfiles no Sambódromo. Aí, Laura e os estudantes começaram a falar sobre o preço alto dos ingressos para os desfiles, a exposição do corpo da mulher e a questão do machismo...

Conversa vai, conversa vem, e... “Eu queria entrar no texto e não conseguia”, conta Laura. A turma começou a compartilhar situações que viveram. “Eles gostam de contar, eles precisam desse espaço. Acho muito interessante nas rodas de conversa, porque eles encontram esse momento para falar o que sentem”, relata.

Todo professor já passou por algo parecido. E, às vezes, bate uma certa frustração quando a aula não sai conforme o planejado. Mas é preciso não ter medo de dar esse espaço e adaptar o planejamento. Há um valor grande para os alunos nessas trocas. “É sempre assim: o planejamento é uma coisa, a conversa real é outra. Percebi que, se eu pedisse para que eles parassem de falar sobre o que sentiam, de compartilhar seus pensamentos, não daria certo”, ressalta Laura.

Por isso, está tudo bem se a roda de conversa não sair como o esperado. Não foi uma aula perdida. Vale a pena dedicar mais tempo e voltar ao texto na próxima aula.

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