Ensino Médio

Inspirada pela bisavó, Maria Isabel propôs um resgate das memórias da região

Os alunos mergulharam na história das comunidades quilombolas ao redor da escola, que fica em uma das regiões mais pobres da Bahia

Maria Isabel Gonçalves, professora do CE Rui Barbosa, em Boninal (BA), trabalhou com referências diversas, como a pensadora alemã Hanna Arendt e o conceito filosófico africano do Ubuntu em seu projeto. Foto: Nidiacris Ribeiro/Trupe Filmes

Nascida no povoado de Duas Passagens, a 15 quilômetros de Boninal, no interior da Bahia, a professora Maria Isabel dos Santos Gonçalves, de 33 anos, não chegou a conhecer sua “bisa”, Maria Rosa de Jesus, a Iaiá Lia, que morreu por volta dos 75 anos, pouco depois de Maria Isabel nascer, em maio de 1987. Mesmo assim, Isabel não se cansava de ouvir “causos” a seu respeito. Parteira, rezadeira e lavradora, Iaiá Lia tornou-se uma espécie de líder religiosa da comunidade de Umburana. Em todo fim de ano, ela liderava uma festa na comunidade, a Reza do Deus Menino, para dar entrada nas festividades de Santo Reis e recebia os grupos das comunidades quilombolas da região.

Viúva antes dos 30, fazia partos para criar seus quatro filhos. Sempre que ajudava alguém a vir ao mundo, recebia, em troca, uma galinha ou um prato de feijão ou farinha. Analfabeta, não deixou uma só linha escrita, mas transmitiu tudo o que sabia através da “contação” de histórias. Foi pensando nela que Maria Isabel criou o projeto As Filosofias de Minha Avó: Poetizando memórias para afirmar direitos. Realizado em 2019, muito antes do fechamento das escolas por causa da pandemia, esse pojeto foi reconhecido como vencedor na edição do prêmio Educador Nota 10 deste ano.

Formada em Letras pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e em Filosofia pela Faculdade Regional de Filosofia, Ciências e Letras de Candeias (FAC), Maria Isabel deu início à sua trajetória de docente no CE Rui Barbosa, em Boninal, a 540 quilômetros de Salvador, no início de 2019. “O que mais me encanta na escola é essa simplicidade no olhar, que me envolve num ambiente seguro para desenvolver meus sonhos de professora”, diz. O colégio onde trabalha atende estudantes de seis comunidades quilombolas: Cutia, Mulungu, Conceição, Lagoa do Baixão, Olhos D'água do Basílio e Machado. “Apesar da sobrecarga de 40 horas em salas superlotadas, o que me guia é um imenso amor pelos meus alunos.”

Em 2020, muitos de seus “sonhos de professora” não puderam ser sonhados por causa da pandemia. “Seja por falta de estímulo ou por dificuldade no acesso, não conseguimos alcançar a todos os alunos”, lamenta. “Nada se compara ao olho no olho. O isolamento social deixou claro o quanto a presença física do professor é importante no processo de aprendizagem.” Na opinião da docente, o ano de 2020 escancarou a fragilidade da vida humana e a urgência de nos apegarmos ao que realmente importa. “Nosso ninho de afeto é a única fonte segura para seguir adiante. Todas as outras certezas mostraram-se escorregadias.”

Mandioca, “mãe três vez”

Na década de 1930, quando a fome castigou a zona rural da Chapada Diamantina, a mandioca era “mãe três vez”. As famílias sertanejas alimentavam-se dela e de seus derivados, como a maniva e a maniçoba, três vezes ao dia: pela manhã, na hora do almoço e ao cair da noite. E, muitas vezes, ainda cediam o pouco que sobrava para quem não tinha o que comer. “Uma coisa que a gente não deve negar a ninguém é um punhado de farinha”, ensinava o pai de Maria Januária, da comunidade Palmeiras do Cedro. Ela é tia-avó de Vitor Manoel, aluno do 2º ano da professora Maria Isabel, e seu relato faz parte do projeto As Filosofias da Minha Avó. “Na ocasião, dois moradores da comunidade não resistiram à falta de comida e morreram de fome”, lembra a docente. 

A sequência didática pode ser dividida em oito partes, que vão desde a apresentação de alguns conceitos, como memória, saudade e esquecimento, até a exposição dos trabalhos dos alunos. Entre outros autores, Maria Isabel apresenta aos alunos o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), que desenvolve o conceito de memória como um instante marcante, e a pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975), que coloca a memória como um ato político. De quebra, esmiúça a filosofia africana Ubuntu, que estimula o espírito de coletividade e pode ser resumida numa frase: “O que vale é o nós; eu sou o que sou porque você também é”. 

“Além de desafiar seus alunos e alunas a resgatarem memórias dos velhos e velhas de seus povoados e identificarem o que há de filosófico nas falas e nos pensamentos deles, a professora trouxe a filosofia para a vida deles”, elogia Mariângela Bueno, selecionadora de História do prêmio Educador Nota 10. E completa: “Mais que isso, rompeu com a ideia eurocêntrica da filosofia, trazendo uma África que sabe, que pensa e que reflete”. Mariângela enfatiza, ainda, que Isabel trabalhou com poucos recursos: livro didático e celulares. Nada mais. 

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O ponto alto do projeto foi a elaboração de um roteiro de perguntas para a coleta de depoimentos. "O importante é que os relatos sejam fluidos, espontâneos, como uma 'contação' de histórias", orientou a docente. O roteiro inclui algumas questões específicas, como história de vida, legado dos ancestrais e preservação da cultura; e outras, mais genéricas, como sentido da vida, definição de felicidade e a importância dos direitos humanos. "De início, alguns alunos até desacreditaram que seus avós poderiam responder algumas das questões do roteiro. Ou, então, que teriam vergonha de expor suas histórias. Mas logo se surpreenderam com o prazer que demonstraram ao serem ouvidos enquanto contavam de suas saudades e das dificuldades do tempo passado”, relata.

Com os roteiros em mãos, os alunos saíram a campo para coletar os depoimentos de seus avós. Ou de outros membros mais velhos da família. A estudante Eline Oliveira dos Santos, de 17 anos, entrevistou Felicina Alves dos Santos, a Dona Lisisinha, de 79 anos, a moradora mais antiga de seu povoado, Capão. Do encontro, nasceu o poema Antiguidade e Evolução, finalista no concurso Tempos de Artes Literárias (TAL), promovido pela Secretaria de Educação da Bahia. “No poema, procurei mostrar gratidão aos nossos antepassados e valorizar a nação quilombola”, explica a aluna. “Dona Lisisinha mostrou que não precisamos de muito para ser felizes.”

Já Amanda da Silva Rocha, de 17 anos, sabatinou o próprio avô, seu Francisco Rocha, de 96 anos, no povoado de Felizardo. "Vozinho ficou feliz da vida pela oportunidade de recordar antigas lembranças e, também, por falar um pouco de sua infância. No fim da entrevista ainda deu um conselho aos mais jovens: 'Ouçam sempre seus pais!' Vozinho me inspira a ser uma pessoa melhor", emociona-se Amanda, que perdeu sua "fonte de inspiração" em maio deste ano.

Nas linhas a seguir, você encontra mais informações sobre cada etapa e, quem sabe, pode utilizar esse projeto como inspiração para trabalhos futuros.

PROJETO AS FILOSOFIAS DE MINHA AVÓ: POETIZANDO MEMÓRIAS PARA AFIRMAR DIREITOS


Componente curricular: Filosofia

Indicado para: 1º ao 3º ano do Ensino Médio

Materiais utilizados: Livro didático Reflexões: Filosofia e cotidiano, de José Antônio Vasconcelos; celulares e aplicativos de edições de vídeo. 

Na BNCC: EM13CHS101 e EM13CHS104 


PASSO A PASSO

1. Puxe a conversa: Para começar, pergunte para a turma o que eles entendem por memória e como ela se constitui. Em seguida, enumere os significados propostos na lousa, comentando a importância de cada um deles para a elaboração de um conceito para a memória. Maria Isabel escolheu enriquecer esse momento apresentando à turma alguns aspectos da memória a partir de ideias de Henri Bergson (a memória como hábito e a memória pura ou do instante marcante). 

2. Leia um clássico: Reflita com a turma um pequeno trecho da obra Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, que fala da manifestação do esquecimento no povoado de Macondo e das estratégias traçadas pelos personagens para continuarem a lembrar a utilidade das coisas. A partir do texto, outras questões podem ser debatidas, como: "Quais as consequências do esquecimento, tanto do ponto de vista individual quanto do coletivo?", "Quais as semelhanças do povoado de Macondo com as comunidades rurais da região?" E "Quais as melhores estratégias para preservação da memória numa comunidade?" Em seguida, a docente destacou no quadro uma frase do trecho escolhido: "Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia momentaneamente capturada pelas palavras, mas que de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita". Foi a partir dele que Maria Isabel apresentou os principais objetivos do projeto, numa perspectiva de afirmação do direito à memória.

3. Mergulhe na filosofia africana: Exiba para a turma o vídeo Ubuntu - O que significa essa filosofia e como pode nos ajudar nos desafios de hoje, produzido pela BBC News. Em seguida, proponha uma conexão com a perspectiva da memória coletiva numa comunidade. Em pequenos grupos, os estudantes devem construir um mapa ilustrado de suas comunidades, representando em cada mapa o "nós" que as constitui, que seria expresso pelo conjunto de seus diversos aspectos (as pessoas, o espaço, a cultura, a natureza e os ancestrais). Na turma de Maria Isabel, cada grupo optou por apresentar o trabalho realizado para todos.

4. Relacione as referências europeias: A professora apresentou um trecho do pensamento do filósofo dinamarquês Kierkegaard (1813-1855) sobre a "visão distante" da recordação: "O velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que o sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta" (O Banquete, Sören Kierkegaard). Na sua turma, você pode partir daí para incentivar a busca pelos relatos das recordações dos avós, a partir de um olhar poético.

5. Prepare com a turma os roteiros de entrevista: Retome as ideias sobre memória presentes na filosofia africana e ajude os estudantes a construírem um roteiro de entrevista para a coleta de relatos na comunidade. Nele, entrarão tanto questões mais centradas na memória, como os fatos marcantes vividos, as paisagens da recordação, a saudade, o legado dos ancestrais, quanto outros temas importantes da filosofia, tais como: o significado da sabedoria, o sentido da vida, os significados do amor, a definição da felicidade, a vida em comunidade, o trabalho e a justiça social, igualdade de gênero, racismo estrutural e direitos humanos.

6. Envie os alunos a campo: Com o roteiro em mãos, e aproveitando os recursos dos próprios celulares, os grupos partem para a coleta de relatos na comunidade, ouvindo os seus avós, demais familiares e outros membros da comunidade. O ideal é que o relato seja fluido, espontâneo. Os depoimentos poderão ser gravados em áudio ou vídeo ou então ser somente anotados num caderno de registros.

7. Finalize: Após a coleta dos relatos, os estudantes devem sair à procura de paisagens relativas às histórias contadas, registrando em vídeos e fotografias. O material produzido pode dar origem a um álbum ilustrado ou a um minidocumentário. Eles também deverão procurar o baú das recordações da família: cartas, fotos e objetos antigos na história da família, fotografá-los para ilustrarem os álbuns ou documentários. Tanto o álbum quanto o minidocumentário serão construídos a partir das narrativas dos próprios estudantes, num olhar poético para a experiência e destacando sempre os aspectos filosóficos de cada etapa do projeto. Ao final, as turmas também podem organizar um seminário para apresentar suas produções, a exemplo do que fez a classe de Maria Isabel.

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