“Eles se sentem parte daquilo”: como os livros infantis podem valorizar a identidade negra na infância
Obras sobre culturas africana e afro-brasileira ajudam a combater estereótipos, promovem a diversidade e elevam a autoestima das crianças pretas e pardas
A literatura infantil tem o poder de abrir portas e janelas para horizontes que as crianças nem imaginam. Através da narrativa literária, elas são capazes de criar identificações, representações e se sentirem parte da sociedade. O ensino das culturas africana e afro-brasileira na escola é fundamental para que os pequenos tenham novas referências desde cedo.
Para construir uma sociedade comprometida com o combate ao racismo, a Educação Infantil é etapa-chave, já que desde cedo esses pequenos cidadãos do mundo podem reproduzir ou serem vítimas de preconceito. Se eles vivem numa sociedade racista e convivem com familiares que reforçam os estereótipos preconceituosos, vão reproduzir esses aprendizados.
O papel da escola é combater esse racismo arraigado no cotidiano e construir, juntamente com as crianças, novas visões sobre o lugar que ocupam. Segundo o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor de livros infantis Renato Noguera, a literatura ajuda as crianças a elaborarem o próprio imaginário e seus comportamentos. “O contato com a literatura é uma prática social. Elas ouvem, leem, aprendem, fazem. Então, é importante que essa prática valorize a cultura afro-brasileira e promova a equidade racial.”
Em um país onde 56% da população brasileira é negra, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é fundamental que a escola aborde essa temática em todas as estapas. A Lei nº 10.639/03, inclusive, torna obrigatório o ensino da história e da cultura negra e afro-brasileira desde a Educação Infantil.
“A literatura infantil tem de estar presente no dia a dia da escola. Ela quebra padrões estéticos, de beleza, de referências. É impossível estudar a história do Brasil, de forma correta, sem estudar a África”, comenta Ana Soares, professora da Escola Municipal Dom João VI, no Rio de Janeiro. A educadora é um dos idealizadores do festival de literatura Lê Comigo, que promove o encontro entre alunos e autores. O projeto faz parte do plano pedagógico da escola que trabalha as temáticas africana e afro-brasileira.
Fortalecimento da autoestima das crianças negras
Quando são apresentadas narrativas com as quais se reconhece, com personagens parecidos com ela, a criança negra se vê representada. “Existem histórias que lidam com o mundo fantástico da imaginação, mas tem aquelas que falam de crianças que vão para a escola, ao mercado, sentem raiva, choram, sonham. Quando veem personagens como elas, quando há identificação visual, elas interagem de forma positiva como aquele conteúdo”, afirma Míghian Danae, mestre em Educação e professora da Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira.
São essas novas referências que ajudam as crianças negras a se sentirem bonitas, autônomas, incluídas. Quando têm acesso desde muito pequenas à literatura africana e afro-brasileira, elas percebem que é possível fazer parte dessas histórias. De acordo com Míghian, a construção dessa autoestima é papel da Educação Infantil, e um dos primeiros passos é mostrar às crianças que elas também merecem ser ouvidas e representadas na sociedade.
Ana concorda que a autoestima é um dos aspectos que a literatura infantil potencializa, assim como a aprendizagem. “Elas pisam no chão da escola e se sentem parte daquilo, se sentem tão capazes quanto qualquer outra criança, se sentem bonitas. Isso faz muita diferença até na postura corporal, o rostinho delas se modifica.”
Cuidados com a escolha das obras
Míghian sugere livros de autores negros e, também, que apresentem histórias de crianças negras em situações cotidianas da vida. Ela cita a obra chamada Lulu Adora a Biblioteca (Ed. Pallas, 28 págs., R$ 31), que narra a vida de uma menina negra que gosta de pegar livros na biblioteca do bairro. “Tudo isso parece simples, mas tem muita potência, pois fala de uma existência. Nós temos um genocídio de jovens e adolescentes negros no Brasil. É importante afirmar a existência das crianças negras, a literatura faz muita diferença nisso”, pontua.
Ao planejar uma atividade, é fundamental pesquisar sobre as obras, conhecer os autores, além de ler muitos livros. Ao explorar o objeto livro, segundo Ana, a professora ajuda as crianças a aproveitarem melhor a experiência literária. Ela indica, também, um envolvimento maior entre a equipe. É importante que exista um diálogo aberto entre os colegas, procurar experiências de quem já trabalha esses temas com as crianças.
O autor Renato Noguera ressalta a importância da seleção das obras, que deve priorizar a diversidade e retratar a realidade brasileira e daquela turma. “A maior parte das crianças na escola é de pardas ou pretas, então, as escolas não podem oferecer livros que só têm representações de pessoas brancas”, afirma.
Construção de valores sociais
Quando se fala de uma Educação Infantil antirracista, a postura das professoras e professores é importante. Se não houver a desconstrução dos próprios preconceitos, o planejamento de projetos com literatura podem ser prejudicados. A maneira como elas enxergam o racismo afetam diretamente o aprendizado e a forma como as crianças brancas, negras ou indígenas se veem e são vistas. “É preciso que as professoras queiram trabalhar dessa forma. Isso significa pensar também no tipo de sociedade que elas querem para elas e para as crianças”, diz Noguera.
Uma das sugestões de Noguera é de que as professoras acessem as obras do Movimento Negro sobre educação, cultura e arte. Para construir uma sociedade democrática é preciso enfrentar o racismo como questão central, e a educação tem papel fundamental.
Para Ana Soares, quando se fala de uma educação antirracista, toda a sala tem de ser sala de leitura. “A escola precisa se posicionar. Estamos o tempo inteiro mostrando caminhos para todas as crianças enfrentarem o racismo e a literatura ajuda demais, de forma paralela e contínua.”
Ainda segundo a educadora, o trabalho com a literatura africana e afro-brasileira tem de ser realizado o ano inteiro com as crianças. Esses conteúdos não podem ser uma atividade comemorativa para o dia 13 de Maio (Lei Áurea) ou do 20 de Novembro (Consciência Negra). “As datas devem ser lembradas, sim, mas é preciso comemorar as pequenas vitórias o ano inteiro e isso é questão de reparação histórica”, finaliza.
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