As crianças das favelas querem estar na capa dos livros, diz Otávio Júnior, vencedor do Prêmio Jabuti
Recém-ganhador da principal premiação literária do país na categoria infantil, o autor aproximou-se da literatura na infância após encontrar um livro no lixão perto de sua casa no Complexo da Penha
Morador do Complexo da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, Otávio César Jr. tem uma trajetória muito íntima com os livros desde criança. A descoberta da literatura foi por acaso, ao encontrar um livro no lixão perto de casa. Depois disso, sua vida foi transformada. “Denomino minha história como um conto de encantamento ambientado na favela.”
Hoje, o jovem escritor negro, de 37 anos, conta histórias a partir das experiências vividas nas comunidades brasileiras. Suas obras exploram a imaginação, os sonhos, promovem a autoestima das crianças negras e o respeito pela diversidade.
Otávio Júnior concedeu a entrevista a seguir em 24 de outubro, dois dias antes de receber o Prêmio Jabuti, principal premiação literária no país. Seu livro Da Minha Janela, da Companhia das Letrinhas, foi escolhido na edição deste ano como a melhor obra na categoria infantil. A NOVA ESCOLA, Otávio falou sobre o papel da literatura infantil e o impacto dos livros na vida das crianças.
NOVA ESCOLA: Como iniciou sua jornada pelo universo literário?
Otávio Júnior: Minha relação com os livros começou muito cedo e de forma inusitada. Sou de uma favela na zona norte do Rio de Janeiro, dentro do Complexo da Penha, e quando criança sempre participava daquelas brincadeiras tradicionais da favela e costumava brincar no campinho de terra que tinha ali perto de casa. Esse campo ficava ao lado de um lixão. E aí, num dia meio nublado, fechado, encontrei no lixo um livro que mudou minha vida.
Era um livro infantil chamado Don Gatón. Ele tinha um formato grande, superilustrado, muito colorido, e aquilo tudo me encantou. A partir daquele momento comecei a explorar esse universo, primeiro na biblioteca da minha escola e, depois, nas bibliotecas públicas no entorno do meu bairro. Fiquei encantado por percorrer e buscar lugares onde os livros fossem protagonistas, como nas bibliotecas e livrarias. E nesses ambientes eu me sentia muito feliz e muito acolhido, buscando narrativas, aventuras. Denomino minha história como um conto de encantamento ambientado na favela.
As narrativas das suas obras também são ambientadas na favela. Como foram seus primeiros passos na produção de livros?
Venho da favela, vivo nela há muitos anos, me conectei muito cedo com a literatura e também com as questões de responsabilidade social. Conheci muitas pessoas desse universo da leitura e do livro, tive contato com a escrita, com a pesquisa da literatura infantil e juvenil. A partir do momento em que eu ia intensificando meus estudos, percebia que muitas pessoas de regiões periféricas não tinham gosto e apreço pelo livro.
Desenvolvi uma pequena metodologia para democratizar o acesso à leitura nas comunidades, que foi o projeto Ler É 10 - Leia favela. As ações foram crescendo e percebi que, além do acesso, era preciso atender às demandas desses leitores. Essas crianças também querem estar presentes nas leituras, nas capas dos livros, nos conteúdos.
Foi assim que você começou a escrever?
Aí eu criei a coleção Lá do Beco, que são cinco livros com histórias infantis. O Chefão Lá do Morro, com uma narrativa que é um jogo de descoberta; O Menino da Camisa Vermelha, que fala desse meu encontro com o objeto-livro e faz algumas provocações; o Morro dos Ventos, com alguns questionamentos em relação a perdas, até mesmo aquelas dolorosas causadas pela violência; Grande Circo Favela, que leva o universo circense para a favela a partir do encontro entre um menina e um palhaço; e Da Minha Janela, que tem elementos de sonho, de transformação coletiva e individual.
As crianças têm uma identificação muito grande com as capas, com os títulos dos livros. As pessoas da favela sentem-se representadas por estar nos conteúdos desses livros. Já aquelas que estão um pouco distantes dessa realidade sentem interesse em conhecer um pouco mais da cultura periférica, que é tão peculiar e valorosa.
Qual importância você acha que a representação na literatura infantil tem na vida das crianças?
Quando as crianças olham as capas dos meus livros, e de muitos outros que trazem essa questão da representatividade, elas se sentem parte do universo literário. A presença, a sua cor, suas vozes estão representadas. Os livros permitem trabalhar a autoestima delas e isso é muito forte. Quando vou aos lugares, vejo como as crianças ficam felizes por essa ampliação da representatividade. Você vê o brilho no olhar delas quando estão perto do autor que tem a mesma cor que elas.
Tenho recebido muitas mensagens de pais e educadores que falam sobre a importância dos meus projetos literários por trazerem essa representatividade periférica e negra. As crianças conectam-se com esse material, aprendem sobre a importância da diversidade. Ainda hoje há momentos duros nas aulas, em que as crianças muitas vezes precisam tentar se enquadrar em representações brancas, traços europeus.
Qual seu maior cuidado ao escrever um livro?
Quero contar uma boa história, meu desejo sempre foi esse. Uma história completa, bem produzida, criativa e conectada com o universo do povo periférico e favelado. Conto com o apoio de educadores, famílias, mulheres negras que me ajudam a criar histórias que fazem sentido. Eu fico muito feliz com essa oportunidade de estar inserido nesse universo literário das produções editoriais e fico feliz que as editoras tenham apostado no meu trabalho.
Em suas respostas você fala muito sobre prestar atenção nas crianças e que a relação com elas é algo que te motiva. O que tem aprendido com elas?
Estou ligado ao universo infantil o tempo todo, em casa com meu filho e nos trabalhos de contação de história que desenvolvo. Meu filho traz um monte de elementos do dia a dia dele e eu fico pensando em como me conectar a isso tudo. Aprendo muito nas ações com as crianças nas comunidades e isso tem me tornado mais criativo, pensativo, atento. Essa observação é incrível e nos ajuda a entender seus sonhos, suas buscas. A minha trajetória na literatura é pautada pelo trabalho como mediador de leitura. Os professores falam muito do chão da escola, sobre o aprendizado no ambiente escolar. Eu destaco o chão da favela e os saberes que vêm a partir da visão sensível e apurada das crianças.
Você comentou que o livro Da Minha Janela tem elementos de sonho e desejo de transformação. Era isso que procurava na sua janela?
Sempre me conectei muito com as visões da minha janela, sempre fui muito observador. Quando adolescente, meu desejo era que a minha janela fosse mágica, que eu pudesse transformar algumas situações desagradáveis em que eu era testemunha ocular. Depois de um tempo, já inserido nesse universo dos livros e desenvolvendo meus projetos com arte, cultura e a educação, percebi que eu tinha esse poder de transformação.
O livro é finalista no Prêmio Jabuti 2020 (ganhou o prêmio após a entrevista). Como nasceu a ideia dessa obra?
Estou muito feliz com o Da Minha Janela. Foi o primeiro livro que escrevi com uma estrutura editorial mais robusta. Passei seis meses numa agência de publicidade em que tinha um espaço grande para planejar, organizar todas as ideias e produzir de fato. O livro surgiu por causa do meu filho. Da nossa janela nós temos a visão da Igreja da Penha, muito tradicional no Rio de Janeiro. Hoje ele tem 12 anos, mas quando tinha 4, olhava pela janela e via aquela igreja enorme, lá no alto da pedra e dizia: “Papai, quero ir no castelo encantado”. E eu fiquei pensando que, se ele tinha essa visão, as outras também teriam. As crianças do Morro da Mangueira têm vista para o Maracanã, as da Rocinha para a Floresta da Tijuca, a maior floresta urbana do planeta.
O que fiz foi me conectar a todas essas visões e juntar tudo isso. E aí convidei a Vanina Starkoff, grande responsável pelas ilustrações desse livro. Percorremos muitas favelas, olhamos diversas janelas, conversamos com várias pessoas para criar esse livro. Acho que o Da Minha Janela tem feito muitas crianças sonharem e se conectarem com esse desejo de transformação.
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