Para repensar a prática

Anna Penido: “É preciso entender as competências gerais como uma bússola, e não um documento estanque”

A especialista que participou ativamente da construção da BNCC acredita que olhar para essa parte do documento com outros olhos abre caminhos para superar a crise na Educação provocada pelo fechamento das escolas

Ilustração de uma escaladora subindo em um percurso de escalada.
Ilustração: Julia Coppa/NOVA ESCOLA

Promover uma Educação integral é o objetivo de professores e gestores de todo o país. Para isso, as competências gerais da BNCC devem nortear as práticas pedagógicas em todos os componentes curriculares e na Educação Infantil, perpassando os conteúdos propostos em cada uma das etapas do Ensino Básico. O documento, porém, não deve ser visto como uma cartilha de regras, pelo contrário: trata-se de uma bússola. É o que defende Anna Penido: “A primeira coisa é mergulhar neste universo das competências e entendê-las mais como uma bússola do que como um documento duro, frio e estanque, e poder fazer esse exercício de empatia com os estudantes.” Anna tem vasta experiência na área de Educação e atuou na fase de debates e de construção do texto final da Base.

Empatia é também a palavra de ordem para encarar 2021 que, com tamanha indefinição, promete ser tão desafiador quanto 2020. Um olhar individual e empático para com os estudantes pode ser a chave para que as dez competências possam ser desenvolvidas mesmo à distância. É importante, ainda, não esquecer da colaboração. “Vale muito a pena que os professores se articulem entre si, porque é um desafio que fica bem mais pesado se cada um tiver que reinventar a sua roda sozinho”, conclui a especialista. 

Anna falou a NOVA ESCOLA por telefone e deu uma verdadeira formação sobre as competências gerais. Aqui, você lerá alguns trechos da conversa.

NOVA ESCOLA: Como as competências gerais podem ajudar a planejar um ano difícil como 2021?

ANNA PENIDO: A primeira coisa é a gente mergulhar neste universo das competências e entendê-las mais como uma bússola do que como um documento duro, frio e estanque, e poder fazer esse exercício de empatia com os estudantes. É aí que será possível entender toda a sorte de desafios e expectativas que esse mundo tão incerto, tão ameaçador neste momento, oferece. Eles [os alunos] estão envolvidos numa série de ansiedades em relação ao presente e ao futuro. E as competências gerais são elementos fundamentais para que os professores possam ter mais clareza, propósito e segurança para enfrentar tantos os desafios presentes quanto os que estão por vir.

Quando olhamos para as competências, percebemos que elas dialogam com autoconhecimento, criatividade, capacidade de argumentar, de entender as notícias, formar opinião. É uma série de competências que são importantíssimas para este momento da humanidade. Então é importante que os educadores tenham essa clareza.

Depois que os educadores dominam as competências gerais como bússola e não como regra, como eles podem trazer para a sua prática pedagógica o que estas propõem? Como elas devem chegar aos alunos para promover a educação integral?

É preciso que essa “aterrissagem” seja intencional, que de fato haja um comprometimento com a implementação de práticas pedagógicas que levem ao desenvolvimento dessas competências. Depois, existem algumas possibilidades. É possível criar atividades que se direcionam especificamente para o desenvolvimento de alguma dessas competências ou é possível transversalizar e articular o desenvolvimento das competências com o desenvolvimento de habilidades previstas em cada uma das áreas do conhecimento.

Neste momento, é muito recomendável fazer um diagnóstico sobre como os alunos estão chegando, tanto em termos de aprendizagem quanto em termos emocionais, para entender como estão as expectativas dos alunos depois de um ano afastados da escola. O que eles viveram? Quais sequelas guardam desse período? Quais são as expectativas para a retomada das aulas? A partir desse diagnóstico, os professores podem planejar atividades que contemplem essas demandas e essas expectativas. Toda a oportunidade, por exemplo, de fazer um reforço de alfabetização é também uma ocasião para trabalhar o equilíbrio emocional, a resiliência e a determinação. Para os alunos do Ensino Médio, é preciso trabalhar as questões que ficaram defasadas, especialmente para os que estão chegando à etapa, mas isso precisa vir com todo um trabalho de projeto de vida, que dará a eles a possibilidade de se engajarem com a escola, com a aprendizagem e verem sentido em continuar seu processo formativo.

A própria cultura digital é uma questão, porque os alunos foram estimulados a trabalhar com tecnologia ao longo do ano passado. Como a escola pode continuar fomentando essa utilização, seja no ensino híbrido, seja até mesmo com as aulas totalmente presenciais? É importante saber em que esse mundo de tecnologia ajudou, o que pode continuar sendo realizado? É toda uma questão que precisa ser muito planejada, cuidada, mas também, repensada. Essa quebra da rotina do processo de aprendizagem como conhecíamos gera uma oportunidade para repensar o que funcionou e o que não funcionou. Já que tudo se desmontou, que a gente possa ter uma abertura ao novo para remontar a partir de outras bases, que [o retorno] não seja apenas reproduzir o que era antes.

Algumas das competências gerais incluem competências socioemocionais. Como os educadores podem driblar as dificuldades de interação e convivência impostas pela pandemia?

A interação existe, o desafio é encontrar novas formas para a interação. E para isso eu vou passar pelas dez competências. Quando a gente fala de conhecimento e valorização do conhecimento, uma das formas é ajudar os alunos a desenvolverem autonomia na busca de conhecimento. Quando a gente fala em pensamento científico, crítico e criativo, a técnica da sala de aula invertida é muito proveitosa, já que na interação [quando todos estão juntos na escola ou em uma aula via internet] é possível argumentar e refletir, cria-se um espaço para debater, questionar, propor e criar. Em repertório cultural, é possível fazer uma visita virtual a museus e organizar saraus para que os estudantes possam também manifestar suas questões emocionais e intelectuais através da arte. E isso ajuda a dar leveza à interação remota.

Em comunicação, precisamos fazer uma espécie de “metadiscussão”, na qual os alunos utilizam a própria experiência em termos de comunicação para discutir como escutar melhor, como interagir, como usar as ferramentas de maneira mais produtiva. Em cultura digital, pensar em que medida a tecnologia ajuda ou estressa. Como fazer um melhor uso? Como se comportar no universo digital?

Em trabalho e projeto de vida, como manter as discussões com os estudantes, mesmo nos anos iniciais do Fundamental, sobre o que dá medo, o que anima, além de como organizar a agenda e se disciplinar para conseguir estudar e aprender diante de uma nova realidade.

Na argumentação, é muito importante trabalhar com eles a questão das fake news. Que tipo de informação está chegando? Como analisar a procedência da informação? Como emitir opinião em momento de tanta polarização? Aí vamos para autoconhecimento e autocuidado, que é fundamental neste momento. As rotinas estão desequilibradas, as pessoas não estão fazendo exercício físico... Como ajudar os alunos a se reconectarem com as suas emoções e cuidarem do próprio bem-estar? Em empatia e colaboração, é importante trabalhar maneiras para que os próprios estudantes tenham um olhar empático. Como os professores podem dar esse exemplo? Prestando atenção em cada um, naqueles que têm mais dificuldades, os que não aparecem, os que não estão conseguindo se adaptar às novas formas de ensino. Tanto o professor pode fazer esse exercício pessoal quanto estimular que os colegas se ajudem mutuamente, façam trabalhos em grupo, estudem juntos. Eles sabem usar essas redes para se interagir, então podem ser usadas também para aprenderem juntos, com grupos de estudo ou grupos de pesquisa, por exemplo.

Por fim, uma questão muito relevante neste momento é responsabilidade e cidadania. Como os estímulos que os professores dão podem fomentar nos estudantes esse sentimento de corresponsabilidade em relação aos problemas que a gente está vivendo?

As dez competências podem estar em textos a serem lidos e debatidos, serem temas de projetos, podem perpassar as atividades cotidianas oferecidas pelos professores, da escolha de um jogo à escolha de uma metodologia e abordagem pedagógica. Tudo são princípios que vão reger as interações entre professores e alunos e entre alunos e alunos. É preciso um pensamento propositivo e intencional. 

A quais pontos os professores, nas diversas disciplinas, devem ficar atentos  para que não se percam de vista as dez competências gerais da BNCC, especialmente no ensino remoto ou híbrido? 

A primeira coisa é esse professor ter um olhar individualizado para cada um dos seus alunos. Esse acompanhamento agora é mais fundamental do que nunca. A outra coisa é, de fato, com base num diagnóstico, entender quais são as prioridades no desenvolvimento das competências. Talvez não dê para fazer tudo ao mesmo tempo, então é buscar o que, neste momento, é mais relevante. Até para que os alunos tenham resiliência para acompanhar essas aulas remotas. A outra coisa é a abertura, fazer diferente, porque não adianta transpor o que se fazia na sala de aula presencial para o ensino híbrido ou remoto. É preciso repensar, recriar e refazer. Vale muito a pena também que os professores se articulem entre si e com suas redes de ensino para buscar isso juntos, porque é um desafio que fica bem mais pesado se cada um tiver de reinventar a sua roda sozinho.

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