Imaginar: como o brincar com profissões ajuda a promover a igualdade
Apresentar ofícios sem distinção de gênero e permitir que as crianças experimentem livremente o universo de todos eles ajuda a ampliar a visão de mundo de meninas e meninos
É na infância que os indivíduos têm uma oportunidade preciosa de começar a formar o próprio imaginário e experimentar, por meio das brincadeiras, o universo dos adultos. Dá para fantasiar que se está cozinhando, dirigindo, construindo algo, costurando, escrevendo ou realizando outras ações que reproduzem ofícios ou profissões. Ao mesmo tempo que se deparam com tantas possibilidades, as crianças também, desde muito pequenas, aprendem quais comportamentos, espaços, desejos e expectativas devem ou não atender por serem meninas ou meninos.
“Existe um forte esquema binário, presente em nossa forma de pensamento, que coloca em oposição o masculino e o feminino e acaba influenciando as ideias do que é ser homem e mulher”, diz Daniela Finco, professora associada do curso de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e líder do grupo de pesquisa Gênero Educação da Pequena Infância, Cultura e Sociedade. “Essa dicotomia cria concepções universais do que devem ser as atribuições masculinas e femininas e dificulta a percepção de que há outras maneiras de estabelecermos as relações sociais”, analisa.
Para a especialista, é importante refletir a forma polarizada como vários elementos presentes na Educação Infantil – as brincadeiras, os brinquedos, as cores, as filas, os usos dos espaços – são apresentados cotidianamente para as crianças a partir das categorias menino e menina. Da mesma maneira, pensar com mais profundidade sobre como as crianças são educadas por padrões sociais pré-definidos do que significa ser mulher e ser homem. “Ao analisar os brinquedos, podemos perceber um conjunto de elementos que se articulam a um projeto de feminilidade e masculinidade”, aponta Daniela. “Os brinquedos oferecidos para meninas e meninos são carregados de expectativas diferenciadas e que acabam por proporcionar oportunidades e vivências limitadas”, avalia.
Em pesquisa realizada em 2015, para sua dissertação de mestrado, Tássio José da Silva, supervisor escolar na Prefeitura de São Paulo (SP), analisou como a organização dos espaços de creches e pré-escolas carregam mensagens e normas de gênero, sugerindo lugares e posições opostas para meninos e meninas.
Tássio observou, por exemplo, “cantinhos da beleza” com elementos na cor rosa e “cantinhos de escritório”, onde a cor predominante era azul. “Foi possível perceber que os espaços já fazem uma divisão por gênero e, assim, mesmo não intencionalmente, reforçam alguns estereótipos e estimulam a ocupação por apenas um ou outro grupo de crianças”, avaliou.
O educador percebeu que meninas disputavam o cantinho da beleza e não permitiam a ocupação dos meninos interessados. “Havia pouca discussão ou interações dos professores a respeito de questões de gênero presentes nessas situações e brincadeiras”, diz Tássio. Para ele, a escola deve ser o espaço para estimular o brincar juntos com menos amarras.
Para Paulo Fochi, pedagogo, professor da Unisinos e coordenador do Observatório da Cultura Infantil (Obeci), os espaços setorizados por atividades ou que representem profissões até podem existir na escola, desde que possam ser acessados por todas as crianças. “Profissão não tem gênero, cor não tem gênero. As brincadeiras são momentos para elaborar e ampliar a visão de mundo. Se a escola aparta brinquedos ou brincadeiras entre meninos e meninas, reforçam-se os estereótipos”, analisa.
Meninos e meninas da turma da pré-escola da professora Fernanda Ferreira de Oliveira, da EM Antonio Boldrin, em Piracicaba (SP), gostaram de criar juntos tiaras com frutas para representar o adereço icônico da cantora Carmen Miranda, em março de 2019, durante o mês de atividades pelo Dia Internacional das Mulheres, que discutiu profissões e ofícios variados de mulheres famosas e anônimas [leia aqui sugestão de atividade para trabalhar as profissões]. “Diante de questionamentos como ‘mas uma mulher pode ser mecânica’, eu retrucava de maneira a estimular a reflexão: ‘O que você acha?’”, conta a docente.
Para o diretor da instituição, Peterson Rigato, trabalhar a fala espontânea das crianças sobre as questões de gênero pode ser um caminho para levá-las a refletirem também as questões de raça e de classe social: “A escola que não problematiza esses pontos acaba reproduzindo aquilo como natural para a sociedade”, avalia.
Associar brinquedos e brincadeiras a significados masculinos e femininos, de forma a hierarquizar coisas e pessoas, passa uma mensagem de exclusão, por isso a importância de desconstruir as dicotomias na apresentação do mundo para as crianças. Daniela reforça o raciocínio: “Ao falar em gênero, podemos refletir a respeito das múltiplas oportunidades que estamos oferecendo às crianças e caminhar em direção a uma sociedade menos desigual, mais plena e feliz”.
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