Entrevista

Daniel Becker: “Espero que a gente não volte a trancar as crianças em sala de aula”

Pediatra e sanitarista fala sobre a importância das experiências infantis na natureza, ainda mais após tanto tempo de confinamento

Ilustração de crianças brincando com folhas e insetos.
Ilustração: Leticia Moreno/NOVA ESCOLA

Há tempos, o pediatra e sanitarista Daniel Becker defende a necessidade de utilizar espaços abertos para valorizar as experiências da infância e aproximar as crianças da natureza. Nesta entrevista a NOVA ESCOLA, Daniel comenta sobre os aprendizados que a pandemia deixa para a Educação Infantil e a importância de adaptar as práticas, tempos e espaços da escola para oferecer mais experiências ao ar livre para as crianças.

NOVA ESCOLA: Neste momento de retomada das atividades presenciais, qual a potência do aprendizado ao ar livre para as crianças?

Daniel Becker: A natureza estimula a aprendizagem, as descobertas e a solução de problemas. A harmonia e multiplicidade de estímulos (visuais, auditivos, táteis, olfativos e emocionais) do ambiente tornam a criança uma cientista e a convidam a investigar. Ela tenta descobrir para onde a formiga carrega a folha, para onde vão as raízes das árvores. São tantas as maravilhas que a natureza oferece. As pesquisas também indicam que o ambiente natural melhora o foco e a qualidade do aprendizado. Além disso, intervalos ao ar livre contribuem para o desempenho escolar. Inclusive, muitas escolas passaram a dar aulas ao ar livre ao longo da pandemia, reforçando a importância do desconfinamento da infância e do desemparedamento da educação. 

NOVA ESCOLA: Quais outros aprendizados a pandemia trouxe para as escolas de Educação Infantil? Quais adaptações se fizeram necessárias e devem permanecer?

Daniel Becker: Em primeiro lugar, a pandemia reforçou a importância da Educação Infantil, tanto para as crianças quanto para as famílias. Foi evidente como as crianças sentiram falta da escola. A falta de contato com a natureza e o excesso de telas também foi um problema. Algumas, por exemplo, voltaram a fazer xixi na cama, passaram a comer demais, ficaram mais quietinhas e apresentaram problemas de linguagem. Muitas ficaram sintomáticas, com ansiedade e angústia, e só melhoraram quando voltaram para a escola. Podemos dizer que a pandemia também trouxe a valorização do professor. As famílias tiveram a percepção da dificuldade desse trabalho e a consciência da importância da escola para as crianças.

A pandemia ainda levantou a questão do ar livre para garantir a segurança, reforçando a importância de mantermos a criança em contato com a natureza. Essa é uma lição muito valiosa. Muitas escolas conseguiram fazer esse trabalho ao ar livre e observamos as crianças mais felizes e desejando esses momentos. Também vi algumas escolas buscando ampliar o próprio espaço fazendo convênios com a prefeitura e utilizando áreas de parques e praças públicas. Jundiaí (SP) tem uma experiência muito bonita nesse sentido, transformando a cidade em um quintal da escola. Eu espero que essas mudanças e adaptações venham para ficar e que a gente não volte a trancar as crianças em sala de aula sem o estímulo maravilhoso que a natureza oferece. 

NOVA ESCOLA: Poderia falar mais sobre a importância de brincar ao ar livre?

Daniel Becker: Precisamos sair do paradigma escolar de que a criança só aprende a partir de um adulto. Na verdade, a criança aprende muito convivendo com outras crianças e brincando livremente. É claro que o brincar dirigido e pedagógico também é importante como ferramenta de aprendizado, mas o brincar livre também é. Nesse momento, as crianças exercem a liberdade e as habilidades: criatividade, imaginação, colaboração, avaliação de riscos, curiosidade, exploração e coragem, além do exercício da musculatura e do sistema músculo-esquelético e articular. O brincar na natureza e no espaço aberto é extremamente benéfico. 

NOVA ESCOLA: Em seu TEDx, “Crianças, já para fora”, o senhor comenta sobre o “momento de consciência” que as experiências ao ar livre proporcionam às crianças. O que seria isso?

Daniel Becker: Esse momento de consciência passa pelo convite que a natureza faz ao maravilhamento. Assim como a arte, a religiosidade e a espiritualidade, a natureza traz um convite a certa transcendência. Ao olhar para uma paisagem natural e bonita, grandiosa ou não, você sente uma comunhão com essa paisagem. Isso quebra os limites do nosso ego e do nosso narcisismo. É a sensação de que o universo é algo do qual fazemos parte e que ele é maior do que nós. É essa sensação de reverência e maravilhamento que a natureza desperta. É um brotinho de vida espiritual para a criança. Ela facilita a consciência no momento presente – algo que o mindfulness e a meditação propõem. Esse é um aspecto belíssimo do convívio com a natureza que a criança pode ter e que afeta positivamente não só elas, mas as famílias também.

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