Por que é importante valorizar e como garantir a representativa negra na escola?
A diversidade étnico-racial também precisa estar presente nas brincadeiras e atividades das creches e pré-escolas
Em 2011, na EMEI Nelson Mandela, localizada na capital paulista, a família do boneco-espantalho Petelo, que já era muito querida pelas crianças e participava de muitos momentos escolares, recebeu a visita de um novo boneco de pano, o príncipe africano Azizi. As crianças logo desenvolveram carinho por ele, se identificaram e criaram uma história em que Azizi cresceu e casou-se com Sofia, filha de Petelo, com quem teve dois filhos.
Pode parecer uma história banal, mas a brincadeira revela a preocupação que as educadoras da escola têm em promover a representatividade negra nas atividades e atender à Lei nº 10.639, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas.
“Através de um projeto sobre diversidade biológica e cultural, as crianças estudaram o que é melanina, mistura genética de pai e mãe, olharam para a própria árvore genealógica e supuseram qual seria a cor de pele dos filhos de Azizi (negro) e Sofia (branca). Foi uma história construída ao longo dos anos a partir de pesquisas e referências familiares das crianças”, explica Tathiana Gonçalves, professora das crianças dos 4 aos 6 anos de idade na EMEI.
Segundo dados de 2020 do levantamento “Cadê Nossa Boneca”, da Avante – Educação e Mobilização Social, apenas 6% de todas as bonecas produzidas por fabricantes afiliados à Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq) são compostas de bonecas negras. O número é bem menor do que 56,1% que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), representa a porcentagem da população negra brasileira. “Antes de trazermos o Azizi, fizemos uma pesquisa e muitas crianças só conseguiam imaginar um príncipe branco, como vemos na mídia e em muitas histórias infantis”, comenta Tathiana em referência à falta de personagens negros em narrativas e produtos infantis.
A pouca representatividade tem enorme impacto na autoimagem das crianças negras e no modo como percebem e valorizam sua ancestralidade. Para as crianças não negras também cria uma imagem de mundo que não é real, onde não há pessoas diversas. Por isso, promover a representatividade negra desde a Educação Infantil é essencial em todos os contextos escolares.
Para tanto, os professores podem investir em histórias e brinquedos que apresentem personagens negros e escritos por autoras e autores negros. Também é interessante convidar as crianças para conhecerem brincadeiras tradicionais de origem africana ou afro-brasileira. No entanto, muita atenção: os personagens negros devem aparecer em diferentes situações e para introduzir qualquer assunto, não apenas os relacionados à diversidade ou ao racismo.
“Uma educação antirracista é, antes de tudo, uma educação que consiga humanizar as pessoas negras. O processo de escravização as desumanizou e até hoje temos dificuldades de entendê-las como sujeitos de direito. Quando as culturas africanas e afro-brasileiras não são ensinadas, a educação está negando diferentes culturas e organizações sociais", comenta Sheila Perina, pedagoga, doutoranda em Educação e cofundadora do Coletivo Luderê Afro Lúdico, que se dedica à arte-educação por meio do repertório literário e de brincadeiras africanas e afro-brasileiras.
Segundo ela, assim como a cultura branca e europeia está presente no currículo e não é questionada, a Lei nº 10.639 e o entendimento da necessidade de respeitar a diversidade devem ser suficientes para que a temática étnico-racial não se torne um tabu.
Apesar dos avanços, a verdade é que as manifestações racistas continuam ocorrendo. Em 2011, quando as questões étnico-raciais começaram a ser trabalhadas com bastante foco, o muro da EMEI Nelson Mandela (que na época ainda não tinha esse nome) foi pichado com a frase “vamos cuidar do futuro das nossas crianças brancas” e com uma suástica. O caso ganhou repercussão, uma pintura artística cobriu o símbolo e a frase e a escola continuou seu projeto. “Há casos em que as pessoas param o trabalho que estão fazendo com medo de retaliação, mas nós ganhamos mais força. As famílias entenderem que era preciso dar força a essa questão e fizemos formações para compreender o que é uma educação antirracista”, comenta a professora Tathiana.
Ainda hoje a equipe docente se preocupa em propor atividades que integrem os moradores da região da escola e os pais e responsáveis. Recentemente, uma turma fez uma entrevista na calçada da escola. Pararam algumas pessoas e perguntaram: “Você sabe por que as pessoas têm cor de pele diferente?” A partir das respostas, começaram uma pesquisa para descobrir se alguma estava certa.
“Percebemos que o trabalho está alcançando os objetivos desejados porque ele sai dos muros da escola e chega às famílias, que dizem que são cobradas pelas crianças para não reproduzir falas ou comportamentos racistas”, comenta Angela Maria da Silva Rezende, coordenadora pedagógica da EMEI.
Ela explica que, para que o trabalho seja bem realizado, a equipe investe na formação sobre o tema, apesar da escola trabalhar com a questão racial há anos. Segundo a diretora, cabe à gestão não deixar que os professores se acomodem em um suposto lugar de quem já entende tudo sobre o assunto. A coordenação precisa proporcionar formações, ajudar a pensar em projetos e oferecer, na medida do possível, os materiais necessários e solicitados pelos professores.
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