Como a professora Gleiciene se desdobrou para alfabetizar alunos de 1º ano
Com olhar atento às limitações da turma, a docente priorizou textos de memória e situações do cotidiano. E, entre vitórias e frustrações, colheu avanços
Em um início de ano típico, a professora Gleiciene dos Santos Cipriano Perrone, que dá aulas para uma turma de 1º ano da EMEB Professor Antônio Manoel de Paulo, em Franca, no interior de São Paulo, fez a avaliação diagnóstica dos alunos e elencou quatro habilidades centrais para o começo do trabalho em Língua Portuguesa e outras quatro em Matemática. Pontos comuns para a etapa, como escrever o próprio nome completo, diferenciar letras de números, escrever a partir de uma imagem e desenhar a partir de uma história. Isso para ficarmos em Língua Portuguesa.
Mas, como todos sabemos, o mundo virou de ponta-cabeça e a pandemia de coronavírus impôs uma situação inédita, em que as escolas foram fechadas e as aulas passaram a ser feitas a distância. Como os demais educadores, Gleiciene precisou encarar o receio, a insegurança e a preocupação em como transpor as práticas pedagógicas para o ensino remoto, ao mesmo tempo que lidava com a receptividade dos alunos e das famílias às mudanças. “Não é que foi necessário abrir mão de teorias e concepções pedagógicas, mas sim, neste momento, flexibilizar alguns pontos”, diz a professora.
Estratégias de como criar um ambiente alfabetizador na sala, promover a troca de hipóteses e aprendizados entre as crianças e fazer um acompanhamento próximo para estimular o avanço do aluno foram colocadas em suspensão. Ou precisaram ser revistas e adaptadas. Mas há outras que ganharam força. “Pesquisadoras da alfabetização, como Emília Ferreiro e Delia Lerner, apontam, há tempos, que as escolas não precisam trabalhar com textos escolarizados, pois eles já existem socialmente”, explica Andrea Luize, coordenadora pedagógica do Instituto Vera Cruz, em São Paulo. “Isso faz ainda menos sentido neste momento. Agora que a escola teve de entrar na casa das pessoas, cabe a nós pensarmos nos textos de circulação cotidiana”, completa.
As opções, indica Andrea, podem abranger gêneros textuais do campo da vida cotidiana, como as listas – criadas, por exemplo, com base nos produtos que a família precisa comprar ou nas brincadeiras realizadas naquela semana pela criança –, os bilhetes, comuns no ambiente doméstico, ou os diários.
Esse olhar atento para o cotidiano atual levou Gleiciene a privilegiar atividades de leitura e escrita em que os contextos envolviam conhecer o bairro e a rua onde os alunos moram, refletir sobre hábitos de higiene – questão que ganhou relevância por conta da pandemia – ou aprender Matemática com situações de uso de dinheiro, algo presente na rotina familiar, entre outros exemplos. O principal foi manter a contextualização das propostas, para que elas ganhem em sentido e permitam às crianças se apropriarem da escrita e da leitura, enquanto compreendem a função social de ambas.
A necessidade de compreender o outro
“No período atual, sejam atividades orientadas pelo professor, sejam aquelas que o cotidiano vai nos ofertando, o essencial é assegurar às crianças vivenciar oportunidades de leitura e escrita em seu dia a dia”, afirma Andrea. Foi o que Gleiciene tentou propiciar aos 21 alunos de sua turma com o envio diário de sugestões de atividades.
O desafio, diz a professora, foi o acesso aos pais – parceiros imprescindíveis nesses meses de distanciamento físico e social. Ainda mais para os alunos de 1º ano, que não têm autonomia para o uso de recursos digitais e precisam dos responsáveis como mediadores. “Foram altos e baixos. No começo, as famílias estavam mais disponíveis e empolgadas. Depois, foram sumindo. E você fica nessa busca ativa, vai atrás para saber o que aconteceu, encaminha para a gestão quando não consegue contato”, reflete Gleiciene.
Foi necessário, então, entender e aceitar a realidade atual. Com a reabertura gradual das atividades econômicas da cidade, muitos dos responsáveis voltaram a trabalhar fora, uma vez que a maioria atua no comércio, em fábricas ou como empregados domésticos. “A rotina ficou mais cansativa para eles. E na minha sala quase todo mundo tem irmão. Então, não é só uma criança estudando na casa. Às vezes, são duas ou três, o que causa estresse”, comenta a professora. Ainda assim, diz que, em média, conseguiu manter metade da turma participando regularmente das atividades.
Controle em segundo plano
Outra estratégia mantida mesmo no ensino remoto foi a de criar oportunidades para as crianças lerem mesmo sem saberem ler convencionalmente e escreverem mesmo sem saberem escrever de modo convencional. Isso foi realizado, por exemplo, nas atividades com parlendas (veja, nesta caixa, a proposta realizada por Gleiciene), quadrinhos e tirinhas. Os resultados, porém, foram relativos – como em geral tem sido tudo neste período ímpar.
Com a distância, o acompanhamento da realização das propostas passou a ser feito por meio dos registros, em fotos, áudios e vídeos, enviados pelos responsáveis. E isso significou não ter mais o controle sobre a produção dos alunos. A professora percebeu, por exemplo, que várias atividades chegavam “certinhas” demais. “Por mais que tenha ficado pouco tempo em sala, sei das condições de cada criança”, afirma Gleiciene. “Sei que, em alguns casos, ela ainda não é capaz de fazer aquilo daquela forma sozinha. Provavelmente, os pais interferiram. Mas tenho de considerar o esforço dessa família”, completa.
Essas interferências, em geral, ocorrem porque os responsáveis não querem expor o que consideram erros da criança, mesmo com a orientação para eles deixarem a criança tentar realizar sozinha, do jeito dela, e que tudo bem não estar tudo certinho. “Quando esses pais estudaram, o erro era encarado como ruim. Então, eles não entendem que o erro faz parte da construção do aprendizado”, comenta a professora. Essa é uma abordagem recente.
“Até o retorno ao presencial, vamos ter de conviver com essa realidade. Não dá para querer que os pais atuem de acordo com a perspectiva de intervenção da escola. Da mesma maneira que, neste momento, não dá para os pais se ausentarem dessa tarefa de apoiar as crianças nas atividades”, diz Andrea.
Ter esses registros, mesmo com a ajuda dos responsáveis, é melhor do que não ter devolutiva alguma, o que às vezes ocorre e gera angústia nos educadores. Como também frustra, no caso de Gleiciene, não ter conseguido organizar encontros on-line coletivos por falta de disponibilidade das famílias e não ter a adesão de todos ao convite para videochamadas individuais.
“Tivemos de dar uma brecada na formação pedagógica propriamente dita e pensar no ser humano com que a gente estava trabalhando”, diz Ana Flavia Ferreira Martins, coordenadora pedagógica da EMEB Professor Antônio Manoel de Paulo. “Recebíamos muitas ligações de professores apavorados, porque foi muita coisa: covid, teletrabalho, uso de tecnologia, devolutiva dos pais, falta de participação de algumas famílias. Por isso, enquanto equipe gestora, decidimos focar os encontros coletivos com os docentes, principalmente, em saúde mental”, conta.
Mesmo com as dificuldades da parceria com as famílias, Gleiciene avalia ter abordado as habilidades previstas no planejamento do início do ano. “O que ficou mais complicado, por conta da distância, é fazer a sistematização dos conteúdos e também mapear as dificuldades da turma para buscar alternativas”, afirma a professora.
A avaliação efetiva do percurso dos alunos durante esses meses de ensino remoto só vai poder ser feita no retorno às aulas presenciais. No caso da escola de Gleiciene, isso só vai ocorrer em 2021, pois a prefeitura de Franca informou que não haverá retomada dos trabalhos em sala este ano. “O fundamental, agora, é ter as crianças lendo e escrevendo. Ou seja, acompanhar se estão acessando o material enviado e realizando as propostas. A avaliação tem de ser uma preocupação menor”, reflete Andrea. A professora concorda. E se atém a cada conquista, como perceber, por exemplo, o avanço de Emanelli e Stephany, de 7 anos. “Elas começaram o projeto das parlendas na hipótese de escrita silábico sem valor sonoro e terminaram na fase silábica com valor sonoro”, conta. Ou a melhora na oralidade de Davi, de 6 anos, antes tímido e inseguro. Assim caminha a alfabetização na turma de Gleiciene e de tantos outros professores, como você: com paciência e compreensão de que é preciso focar no que é essencial.
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