Tudo começou na África: como levar o conhecimento surgido no continente para suas turmas
Ao ensinar Matemática e Ciências aos alunos do 1º ao 5º ano, é possível ressaltar as contribuições fundamentais dos povos africanos para o saber humano
Foi no vasto continente africano que surgiu o ser humano enquanto espécie, e é lá também onde uma rica produção científica e cultural germinou. Para se deslocarem no deserto do Saara, os povos que habitavam a África há milhares de anos aprenderam a ler as estrelas. Para construir pirâmides avançaram na Matemática e na Física, e para a mumificação estudaram a anatomia humana e a de vários animais detalhadamente. Os povos africanos eram também notórios engenheiros navais, tendo alcançado outros pontos do mundo muito antes dos europeus.
Mas, por aqui, em que 56% da população é negra, nossas crianças e adolescentes veem os saberes europeus dominarem os livros e os quadros das salas de aula, e todas as contribuições iniciais e atuais do continente africano serem muitas vezes resumidas ao tema da escravidão. “Vários conhecimentos europeus têm por base saberes africanos. E essa é a gênese do conhecimento: ele circula, se renova e pode ser adaptado. A questão é que há um apagamento dessas raízes no nosso currículo”, explica Sherol dos Santos, docente na rede estadual do Rio Grande do Sul e consultora deste Box.
Esse processo teve início juntamente com o projeto colonial europeu, cujo domínio econômico e militar sobre povos da África, da Ásia e da América também envolveu um silenciamento de seus saberes. “Ocorre, então, o genocídio e o epistemicídio: a colonização aniquila corpos, mas também subjetividades e conhecimentos. E embora a América Latina tenha conseguido se emancipar das metrópoles, seguimos subalternizados do ponto de vista econômico, cultural e científico”, observa Mayana Nunes, assessora de projetos do Fundo Brasil em Direitos Humanos.
Todo esse processo que acarretou na instituição do branco europeu como (falso) símbolo do máximo desenvolvimento humano reduziu as possibilidades de lidar com a diversidade e ver potencialidade e inteligência em outros lugares do planeta. Para as crianças e adolescentes brancos, um currículo que parte sempre do ponto de vista europeu gera um relevante prejuízo: se tudo o que eles aprendem na escola é o correto, e foi feito por pessoas brancas, então tudo o que eles acreditam e fazem é também correto, e os demais têm menos valor. “É aí que nasce todo tipo de intolerância”, pontua Sherol.
Já para os estudantes negros, isso fere a autoestima, porque não se veem como parte de um povo capaz de grandes feitos, o que contribui para repetência, a baixa aprendizagem e a evasão escolar. “O passado fala muito de quem somos, mas fala também do futuro, porque onde eu não me vi, eu não me projeto. Isso extermina sonhos e possibilidades de vida”, afirma Bárbara Carine Soares Pinheiro, professora de Química na Universidade Federal da Bahia.
A partir da compreensão desse cenário, grupos de autores latino-americanos, que foram subalternizados pelo processo de colonização, começam a reivindicar o seu lugar na história, e a propor levar para a sala de aula conhecimentos africanos, árabes, asiáticos, indígenas e brasileiros, o que não significa subestimar ou deixar a produção europeia de lado, mas ampliar olhares. “Isso ajudaria inclusive a enxergar a nossa história com mais respeito e abandonar a síndrome de vira-lata, de filhote da colonização”, avalia Sherol.
Pensamentos também podem ser colonizados. Por isso, a Educação tem um papel importante de oferecer aos estudantes, desde a infância, o contato com uma pluralidade de mundo e de ideias, tal qual a diversidade da nossa sociedade. “Também potencializa o enfrentamento ao racismo, e convida a branquitude a se refletir: quem está no lugar de privilégio precisa se engajar e ser nosso aliado”, pontua Mayana.
Um currículo descolonizado na prática
Para começar a desenvolver esse trabalho, os professores precisam encontrar respaldo em seus pares, gestores e na comunidade. A escola deve garantir a representatividade também nas escolhas de quem ocupa o lugar da docência e da gestão.
No cotidiano da sala de aula é possível valorizar as contribuições africanas para a Matemática. Ao trabalhar aritmética, professores podem mostrar o osso de Ishango ou ainda estudar as formas geométricas a partir das pirâmides do antigo Egito. Ou contar que o zero não existia na Matemática europeia, veio da cultura hindu-arábica. É possível, ainda, ressaltar que Euclides, no prólogo de Os Elementos, afirma ter embasado sua produção em conhecimentos africanos e mencionar o fato de Pitágoras ter vivido 17 anos no Egito.
“Sempre mostram na escola aquela imagem que ilustra a evolução humana, mas ela estaciona em um homem branco. Por que não acrescentar a ela diferentes tipos de humanidades, de formato corporal, de cor da pele?”, questiona Bárbara.
Vale mostrar também as contribuições atuais. Na África do Sul, há o projeto do radiotelescópio mais potente do mundo. Na Tunísia, desenvolveu-se a primeira turbina eólica sem lâminas. E o cientista ugandês Brian Turabagye criou um colete que identifica pneumonia nas crianças, um mal que atingia em cheio o país. “Estimule também que as crianças aprendam na prática e com a ajuda da família. Isso mostra que a Ciência está no dia a dia e não pertence a um povo ou a um lugar”, indica Sherol.
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