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O que é etnomatemática. E como trabalhá-la em sala de aula

O campo de pesquisa dedica-se a mostrar as várias “matemáticas” do mundo, da produção de conhecimento em diferentes culturas aos saberes do cotidiano. Confira três dicas de como estimular o contato dos alunos com o tema

A geometria sona, que envolve fazer desenhos geométricos com o dedo na areia para contar histórias, é um bom exemplo da riqueza da Matemática na África. Ilustração: Ana Cardoso/NOVA ESCOLA

Quando refletimos sobre as várias linguagens que a humanidade desenvolveu ao longo do tempo, não estranhamos a diversidade de idiomas e formas de expressão. Porém, quando pensamos na Matemática (com “M” maiúscula), parece existir uma só. Esquece-se, porém, que ela também é uma linguagem. É para expor as várias “matemáticas” que existem pelo mundo, fruto das observações e técnicas que cada cultura desenvolveu para decodificar seu arredores, que surge a etnomatemática.

Quem primeiro cunhou esse termo foi o matemático brasileiro Ubiratan D’Ambrosio, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos anos 1960, ele foi convidado a lecionar no Centre Pédagogique Supérieur, em Bamako, capital da República do Mali, com a proposta de formar outros professores de Matemática. 

Ao chegar ao Mali, começou a entrar em contato com a cultura e a história local, e descobriu que em 1300 a.C. Mali era o maior império do mundo, com um avançado sistema financeiro, de irrigação e arquitetura, e concluiu: nada disso seria possível sem o desenvolvimento de um sistema numérico e de cálculos muito próprios. É assim que Ubiratan começa a se perguntar sobre as outras matemáticas do mundo e por que elas não aparecem em nossas salas de aula.

Hoje, a etnomatemática se consolidou enquanto campo de pesquisa, com várias dimensões para além da educacional: conceitual, histórica, cognitiva, epistemológica, política. “O professor Ubiratan propõe que a gente olhe para a Matemática como uma das diversas formas de expressão das culturas, e como enfrentamento ao falso discurso de que a única matemática existente e correta é a europeia”, explica Rodrigo Abreu, professor da rede municipal de São Paulo e membro do grupo de estudo e pesquisa em Etnomatemática da Faculdade de Educação da USP.

Para além dos conteúdos matemáticos, a etnomatemática dedica-se a promover o respeito à diversidade do conhecimento, e a possibilidade de somar saberes, em vez de anular um para impor o outro. Esse olhar estende-se não apenas à produção de conhecimento em diferentes culturas, mas também às situações do cotidiano, que podem proporcionar formas particulares de resolver problemas do mundo, sejam eles matemáticos ou não. 

“Todo mundo traz um conhecimento que aprendeu no contexto em que está inserido, não é só coisa de gênio. Então é preciso entender como esse estudante está usando e desenvolvendo suas habilidades matemáticas e, a partir disso, aprofundar e avançar esses conhecimentos, talvez formalizando, para a linguagem utilizada pelo meio científico, mas sem desprezar o que ele traz”, recomenda Rodrigo.

Lembrando a Lei nº 10.639, que instituiu em 2003 a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas do país, Rodrigo faz um convite aos professores de Matemática para que eles vejam a área de ciências exatas como responsável não só por cumprir a legislação, mas por verdadeiramente valorizar o outro, uma tarefa que não pode se restringir apenas à área de ciências humanas. “E isso tem de se espalhar para além da sala de aula”, reflete.

Assim, pode ser interessante, por exemplo, pedir a um aluno, filho de pedreiro, que converse com o pai sobre como ele faz os cálculos de uma área para saber quantos azulejos comprar, ou como uma costureira sabe quanto de tecido vai precisar. Isso mostra para a família que a escola a valoriza, abrindo caminhos para melhorar o relacionamento entre todos. “As pessoas que acham que sabem menos sabem muito, mas não do jeito eurocêntrico. E aí todo mundo falou que eles não sabiam matemática, e eles começaram a acreditar”, afirma Rodrigo. 

Confira três maneiras de levar a etnomatemática para a sua turma de forma prática e divertida.

Mancala. A família de jogos africanos mancala estimula habilidades de cálculo e de pensamento estratégico. Com poucos recursos, é possível reproduzir o tabuleiro com as crianças. “Em muitos jogos ocidentais você tem de dissimular e exterminar o outro. Mas neste jogo você tem de semear no campo do outro para vencer. E isso traz para as crianças uma visão da cultura africana, bem como um posicionamento político e social diferente”, explica o professor Rodrigo Abreu.

Aprenda a jogar mancala e baixe um tabuleiro do jogo

A matemática em uma bola de futebol. Existe algo de muito especial na geometria da bola de futebol que fez com que, apesar de todas as mudanças no mundo entre a década de 1970 e o ano de 2010, ela se mantivesse a mesma. O livro Mundial de Futebol e de Trançados, escrito pelo matemático Paulus Gerdes, explica de forma divertida a matemática escondida nessa bola, originária de trançados orientais, passando por um chapéu de Moçambique, um ornamento da China e uma coroa dos índios timbira. A versão digital da obra está disponível gratuitamente e traz atividades práticas para fazer com as crianças.

Fábulas matemáticas. A tradição oral é parte importante de várias culturas africanas. A partir de furos feitos em um chão de terra ou areia, uma pessoa começa a contar uma história, como a de um galo fugindo de uma raposa. A partir disso, vai riscando em volta desses buracos, formando uma malha, sem tirar o dedo do chão ou passar pelo mesmo ponto duas vezes. Essa é a geometria sona (entenda mais no vídeo abaixo). “Ela envolve um desafio de raciocínio lógico a partir de uma fábula, e que ainda forma um desenho bonito no chão”, explica Rodrigo. 

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