ENTREVISTA

Sonia Guimarães: “Aquela professora que disse que eu nunca usaria Física para nada precisa me ver agora”

Docente do ITA, a cientista reflete sobre os obstáculos e preconceitos que sofreu em sua trajetória escolar e ressalta a importância de estimular as crianças negras a perseguirem seus sonhos

Hoje, Sônia é especialista em um campo de pesquisa que possibilita o desenvolvimento de tecnologia para celulares. Ilustração: Ana Cardoso/NOVA ESCOLA

As áreas de Física e Matemática são, até hoje, majoritariamente dominadas por homens e com pouca diversidade racial. Dos mais de 63 mil professores brasileiros, apenas 251 são mulheres negras: 0,4% do total, de acordo com o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior. Mas a cientista Sonia Guimarães, 63, desafia essa realidade.

Estudante de escola pública, ela ingressou na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em São Paulo, nos anos 1970 e formou-se em Física. Logo começou um mestrado e foi a primeira negra brasileira doutora na área pela Universidade de Manchester, na Inglaterra. Em 1993, tornou-se professora do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), sendo também a primeira mulher negra a lecionar na instituição que só viria a aceitar o ingresso de mulheres na graduação três anos depois.

Hoje, é especialista em Propriedades Eletróticas de Ligas Semicondutoras Crescidas Epitaxialmente, campo que possibilita o desenvolvimento de tecnologia para celulares. Além disso, é uma das maiores defensoras da presença de mulheres nas ciências exatas e tem promovido palestras com estudantes da Educação Básica para estimular que eles, sobretudo as meninas negras, ocupem o lugar que desejam na sociedade. 

Em entrevista a NOVA ESCOLA, Sonia contou um pouco de sua trajetória e refletiu sobre o papel da Educação no combate ao racismo. 

NOVA ESCOLA: Como foi a sua trajetória escolar, da Educação Básica ao doutorado, para se tornar cientista? 

Sonia Guimarães: Eu era estudiosa, gostava muito de Matemática e sempre tive muitas perguntas a fazer. Desde que comecei a perguntar, não parei mais. Ganhei muitas competições escolares, e os professores gostavam muito de mim, porque eu tinha notas muito altas.

Quando fui para o ginásio (atual Ensino Fundamental 2), eu tinha o direito de estudar de manhã, período destinado aos melhores alunos, mas me tiraram e deram a minha vaga para uma aluna branca, aí eu fui estudar à tarde. Senti tanta raiva disso que acabei tirando nota 6 em uma prova de Física, a nota mais baixa que eu já tirei em uma prova. Fui tentar conversar com a professora, então ela respondeu que eu nunca aprenderia Física. Me formei com a segunda melhor nota da escola, sendo que a primeira foi de um menino negro. 

Depois fiz um cursinho e entrei na Universidade Federal de São Carlos, e no meu ano só tinha eu de negra. Eu nunca pude ter a bolsa de iniciação científica porque a professora disse que eu nunca usaria Física para nada. Mas dos 50 alunos que entraram no curso, somente 6 se formaram dentro do tempo regular de 4 anos. Destes, apenas 2 eram mulheres, e eu era uma delas. 

Assim que concluí a graduação, entrei no mestrado e logo em seguida no doutorado. Eu nunca parei de estudar na minha vida, e aquela professora que disse que eu não usaria Física para nada precisava me ver agora [risos]. Não foi fácil, mas toda oportunidade que me apareceu, eu peguei com todas as minhas garras.

O seu trabalho hoje envolve a docência e a pesquisa, mas também a luta pela inclusão de mulheres, negros e negras, na área de ciências exatas. Você pode me contar um pouco sobre essas frentes de atuação?

Eu dou aula e cursos, e a novidade das nossas pesquisas é que existe a possibilidade de desenvolver um celular que carrega sua energia a partir de uma fonte de luz. 

Também dei uma palestra no Instituto Federal de Volta Redonda e a estudante Pamela Vicente de Campos escolheu ser minha orientanda para uma pesquisa que, quando estiver pronta, vai permitir dobrar os celulares para tamanhos bem pequenos, dobrar sua televisão e levar para a praia. E o objetivo da Pamela é apresentar esse tipo de tecnologia no Ensinos Médio e Fundamental 2, para mostrar que a Física não é chata, e convidar a molecada para a carreira científica. 

Com a pandemia de covid-19, tenho dado muitas palestras assim, porque dá para fazer tudo pelo computador. Então tenho falado com grupos de Fundamental I e II, e dizendo que elas podem fazer parte das Ciências e serem protagonistas. Nessas conversas, também falo sobre a origem da humanidade, na África. Gosto de afirmar que eles não têm razão para ter vergonha da cor da pele, e conto como era o continente africano antes de os europeus chegarem e acabarem com ele.

Qual é o papel da escola no enfrentamento ao racismo estrutural? 

Em primeiro lugar os professores precisam de formação, de qualificação sobre a Lei nº 10.639, para compreender que a História da África não é sobre escravidão. Ela tem de ser contada desde antes da invasão europeia.

E precisam estar atentos às falas que eles trazem, a mostrar um bom exemplo para as crianças negras, porque não existe pior coisa no mundo que não poder ser o que se é. E na aula, as lindas, as ricas, são sempre meninas loiras de olhos azuis. Aí quando é assassino, estuprador, é sempre um negro ou uma negra. Mas na vida não é assim.

Outro ponto é que as escolas precisam contratar professores negros. Quem está dando aula? Quem é o diretor? E quem está lavando o chão? Porque isso se amplia para perguntas como: quem é governador? Quem é presidente da República? A criança tem de se espelhar naquela professora preta, para poder pensar que ela também pode ser uma professora. É um começo, uma passo para uma grande caminhada que ainda temos pela frente.

Como os educadores podem ajudar a semear nos estudantes negros a possibilidade de sonhar e ter confiança para ir atrás de seus objetivos?

Essa criança tem toda razão de estar triste e não ter sonhos, porque ela não vê um futuro. Então apresente futuro. Conte histórias de pessoas negras, meninas e meninos, que passaram por situações parecidas, mas que foram fazendo isso e aquilo, e hoje são exemplo. Assim as crianças vão saber que existe possibilidade e oportunidade. E vá atrás do que essa criança gosta de fazer, dê oportunidades para que ela desenvolva isso. 

E todo e qualquer sonho que a criança contar para você, responda: sim, você consegue! Você vai ter de estudar e trabalhar o dobro ou o triplo não por ser negra —, mas pelo racismo estrutural, que vai dar dificuldades para que você estude nas melhores escolas. Mas você consegue. Você não é menos inteligente, e não é porque você é pobre. É por causa do racismo, desses 388 anos de escravidão, de 132 anos de mentira da Abolição da Escravatura, que proporcionaram várias dificuldades para as pessoas não brancas. É o racismo que fica segurando, impedindo. Mas você é inteligente e capaz.

Essa criança vai ouvir que ela não vai conseguir porque ela é preta. Mas é importante ela saber que não é por isso, e que ela é a pessoa mais capaz do mundo. Nossos antepassados atravessaram o oceano nas piores condições e sobreviveram. Suportaram a escravidão e sobreviveram. Veio a mentira abolicionista e ainda estão vivendo. E estão dentro da escola. Não existe ninguém mais capaz do que ela. Jamais diga que não vão conseguir, nem que seja um bebê. E se a pessoa tem essa capacidade de prever o futuro, então prefiro que ela me diga o resultado da loteria [risos].

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