Com cantigas e livros, projeto promove educação antirracista com lições da capoeira
Chamado Pegada Preta, o trabalho do professor Jairo de Souza leva a alunos do 1º ao 5º ano ensinamentos da expressão cultural afro-brasileira e obras literárias sobre negritude
O professor Jairo Ferreira de Souza, de 38 anos, dá aula há uma década na rede pública de ensino de São Paulo, cidade onde nasceu, cresceu e estudou em instituições públicas de ensino, entre elas a Universidade de São Paulo, pela qual se formou no curso de Letras.
“Quando entrei na USP, determinei uma meta de dar aula em escola pública e participar da formação dos alunos com as minhas experiências”, diz o docente, que, no último ano do curso, já trabalhava como professor temporário.
A experiência de vida como jovem negro, morador da periferia e contramestre de Capoeira Angola foi a inspiração para a criação do projeto Pegada Preta, aplicado por Jairo em escolas de São Paulo para apresentar a cultura afro-brasileira aos alunos.
As cantigas da capoeira guardam ensinamentos ancestrais e dão oportunidade de analisar outros formatos de linguagem, pontuados pelo ritmo e uma comunicação própria da capoeira. Juntamente com as cantigas, os alunos também começam a estudar uma bibliografia específica sobre ancestralidade, capoeira e negritude.
As atividades em roda com a valorização da escuta e da expressão dos estudantes ajudam no desenvolvimento e na autoestima deles, diz Jairo: “O professor precisa ficar muito atento na preparação técnica para aplicar este projeto. É necessário estudar a literatura negra, escolher bons livros [veja algumas sugestões ao final da matéria] e, na roda de conversa, ir instigando os alunos a lerem e aprenderem mais”.
O mais novo de cinco irmãos, Jairo trabalhou como office-boy e soldador. Em meados dos anos 1990, conheceu o mestre Bigo, que tinha sido contemporâneo e discípulo de mestre Pastinha (1889-1981), o fundador e ícone da Capoeira Angola.
A capoeira é uma manifestação cultural genuinamente afro-brasileira que pode ensinar muitas coisas para os alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.
“A gente estuda muito dentro da capoeira. Ela é a resistência preta. Com o meu mestre eu aprendi muita coisa sobre sagacidade, dito popular. Aquele tipo de ensinamento que fica na sua cabeça e te faz refletir” diz Jairo.
Pela faixa de idade dos alunos, entre 7 anos e 11 anos, Jairo acredita que o projeto Pegada Preta é grande oportunidade de iniciar uma educação antirracista. “No Fundamental 1, a oportunidade de construir e criar uma visão de mundo é maior. Alguns livros partem da desconstrução, de uma situação de sofrimento, para falar de racismo. Eu acredito que o caminho deve começar direto na construção”, defende o educador.
O professor cita, como exemplo, de uma narrativa positiva para os alunos menores o livro A Cor de Coraline, de Alexandre Rampazzo (Rocco, 32 págs., R$ 44,90).“A narrativa gira em torno das dúvidas possíveis sobre o lápis cor de pele. Qual seria a cor da pele se fosse em Marte, se fosse em um reino no fundo do mar etc. O mundo é diverso e as cores das pessoas também são diversas”, resume Jairo.
Em 2013, quando dava aula na EE Francisco Alves Mourão, no Jardim Apurá, zona sul de São Paulo, o professor coordenou um projeto para abordar a questão da intolerância religiosa, relacionando o tema com outras disciplinas, tais como Arte, Biologia e História. As atividades integradas ao tema “Pluralidade cultural: Matriz africana em foco” foram desenvolvidas ao longo de um semestre inteiro.
“Conseguimos quebrar aquela barreira do 'novembrismo' e falamos de identidade e intolerância religiosa. Foi importante para os alunos que eram do 'povo de santo' e eram perseguidos por alunos evangélicos e alunos católicos”, relembra o professor.
“O tempo da capoeira é outro”
No ano seguinte, Jairo começou a desenvolver a ideia do projeto Pegada Preta com os elementos da Capoeira Angola. “O tempo da capoeira é outro. É diferente. Ele não bate com a didática eurocêntrica. O mestre fala quando percebe que o aluno está pronto para aprender”, explica o docente.
O projeto parte da filosofia dos velhos mestres, das cantigas de roda, para construir conexões com a literatura. “Quando a música fala sobre Zumbi, por exemplo, já precisa ter uma conexão com Palmares, com os quilombos e os livros que falam sobre o processo histórico contra a escravidão”, disse.
Obras sobre capoeira e cultura afro-brasileira
O processo de introdução da cultura afro-brasileira pode ser feito também com músicas, filmes, vídeos e histórias em quadrinhos que tenham relação com o tema. Um exemplo é a história em quadrinhos (HQ) Angola Janga, uma história de Palmares, do quadrinista e ilustrador Marcelo D'Salete, lançada em 2017.
Em 2018, Angola Janga ganhou o Prêmio Eisner, a mais importante premiação mundial de quadrinhos. No mesmo ano, a obra também levou o Prêmio Jabuti.
“O interessante é que, além de uma literatura afro-brasileira de alta qualidade, a própria cultura da capoeira também lançou seus livros que podem ser usados no projeto. É caso do livro Histórias de Tio Alípio e Kauê – O beabá do berimbau, da editora Ciclo Contínuo, que foi escrito e ilustrado por Márcio Custódio Folha, capoeirista e discípulo do mestre Pinguim, da linhagem do mestre Gato Preto”, indica Jairo.
O livro traz o personagem Tio Alípio, que foi inspirado em diversos grandes mestres da Capoeira Angola. Ele é o guardião da riqueza cultural da África e da capoeira que compartilha os seus saberes com o garoto Kauê, que adora o som de berimbau.
O autor usa o instrumento como mediador sonoro das conversas entre os dois acerca de orixás, lendas e danças.
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