Kiusam de Oliveira: “Livros de qualidade podem curar vidas”
A professora e autora de literatura infantil analisa o racismo estrutural na sociedade e nas escolas e enaltece autoras e autores que, assim como ela, buscam elevar a autoestima das crianças negras
Com uma alfabetização precoce, a professora e escritora Kiusam de Oliveira sempre foi muito apegada aos livros e seus saberes. Quando tinha 10 anos, escolheu os clássicos Os Lusíadas e Os Sertões entre as opções de obras disponíveis no Círculo do Livro, que dona Erdi, sua mãe, assinava. Essa paixão pela leitura marca a trajetória de quem é hoje uma notável autora brasileira de livros infantis.
A partir de 2009, Kiusam começou a publicar seus livros que falam sobre a cultura afro-brasileira. O primeiro foi Omo-Oba – Histórias de Princesas, que se tornou grande sucesso nacional e internacional, recebendo diversos prêmios. Nos anos seguintes publicou diversas obras com uma olhar sensível para a ancestralidade africana e a representatividade negra, como O Mundo no Black Power de Tayó e O Mar Que Banha a Ilha de Goré.
A escritora nasceu em Santo André, no ABC Paulista, onde fez o magistério de 2º Grau e cursou pedagogia. Na USP, fez Habilitação em Deficiência Mental, mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano e doutorado em Educação. Ao longo dos últimos 25 anos, foi chefe de serviço de Educação do munícipio de Diadema e implementou a lei nº 10.639/05 (entenda mais aqui) na cidade. Desenvolveu atividades formativas para educadores com temáticas relacionadas à diversidade de gênero, questões étnico-raciais e afins.
Outra grande paixão de Kiusam é a dança. Ela fez balé clássico dos 5 aos 18 anos. Na adolescência teve seus primeiros contatos com a dança afro, na Escola de Samba Unidos do Peruche. De 2000 a 2007 montou a “Corte dos Orixás” do Bloco Afro Ilu Obá de Min, em São Paulo, e começou a ministrar a oficina Ará Ayó: Dançando e Cantando com os Orixás, em São Paulo e também por todo o país.
Na entrevista concedida a NOVA ESCOLA, a escritora reflete sobre a trajetória pessoal e os impactos que própria obra e a de outros autores negros podem ter na formação das crianças.
NOVA ESCOLA: Como a sua experiência como professora contribuiu para a escrita dos livros?
KIUSAM DE OLIVEIRA: Estar no ofício do magistério e em contato com os estudantes me apoia na hora de criar histórias, mas não é o que define tudo isso. O que definiu tudo isso foi, sem a menor dúvida, minha mãe carnal Dona Erdi, que me preparou em cada dia de sua vida para isso. Fui para a escola com 2 anos e meio e aos 4 já estava alfabetizada. Desde meu primeiro dia de aula, minha mãe colocou um bloquinho de notas e um lápis no bolso de uma capanguinha que ela mesma fez de crochê para me acompanhar na escola e me disse "Escreve tudo o que viver". E assim tenho feito.
Questões relacionadas ao racismo e Direitos Humanos devem ser conversadas com as crianças a partir de que idade?
A Educação brasileira deveria estar pautada na Constituição Federal e nos Direitos Humanos, não só nas questões que estruturam a educação formal, mas no que tange aos direitos fundamentais de todos os seres humanos, respeitando a diversidade presente no país, em termos práticos. Tudo isso acaba ficando muito no teórico e a prática torna-se algo tão intangível no cotidiano, o que me leva a pensar que a práxis é um devir que devemos nos atrever a sonhar.
Direitos Humanos deveriam ser temas formativos das infâncias em nosso país e sim, literatura de qualidade pode facilitar práticas libertadoras, introduzindo, de modo lúdico, temas cruciais para que desde a mais tenra idade a criança possa se sentir um ser humano que busca fazer da Terra uma “útera” acolhedora de suas filhas e filhos, capazes de vê-la como uma Grande Mãe.
Na escola, muitas vezes as crianças enfrentam o mesmo tipo de racismo que assola as ruas. Como os professores devem tratar essa situação em sala de aula?
O fato de na escola ser possível encontrar as mesmas práticas racistas que assolam as ruas dá-se por conta de o racismo ser estrutural. E o que isso quer dizer? Quer dizer que o Brasil foi construído a partir do subjugo da população negra, a partir do estabelecimento não igualitário entre seres humanos, onde uns são considerados mais humanos que outros, coisas da branquitude enquanto sistema perverso que tem imposto as regras perversas do jogo na sociedade brasileira. Sendo assim, tudo se torna mais desafiador, afinal, não são as mesmas pessoas que aprenderam com o racismo estrutural como base das relações no país que estão desenvolvendo várias funções e ocupando diversos cargos em uma escola?
Nada simples, contudo, o cumprimento da LDB 9.394/96 em seus artigos 26A e 79B, que obriga o ensino da História da África e das culturas Afro-brasileira e Indígena, modificações provocadas pelas leis nº 10.639/03 e 11.645/08, fruto de lutas dos movimentos sociais antirracistas. Nesse sentido, mudanças são possíveis se cada pessoa buscar compreender onde guarda seu racismo, que no Brasil para mim, é como um bichinho de estimação que as pessoas guardam e protegem com todo apego e fervor.
Tais leis obrigam que as pessoas encarem suas limitações enfrentando-as com verdade se quiserem desenvolver seus ofícios com profundidade.
A sua literatura é inspiradora para crianças negras porque valoriza a autoestima, mas também é fundamental que crianças brancas tenham acesso e compreensão dessas histórias. Qual o impacto que a senhora espera que os seus livros tenham nas crianças e nos pais brancos?
A Literatura que tenho elaborado é inspiradora porque é altamente qualificada e toca especialmente as crianças, os jovens e os adultos negros por eu escrever diretamente com meu coração experiente em resolver as faltas que as práticas racistas me trazem e na necessidade de transformá-las em presenças potentes. Assim sou capaz de atingir corações de outras pessoas que se identificam com tal necessidade.
Como eram abordadas as questões raciais e a história da cultura afro-brasileira em 2009, antes da sua estreia na literatura, e agora em 2020?
Em 2003 houve a implementação da lei 10.639/03 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 obrigando o ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira. Assim, houve uma corrida por parte de muitas editoras em produzir, como que a toque de caixa, histórias com personagens negros, ainda que naquele momento fosse muito comum o convite para que autores brancos criassem tais histórias. Ainda assim, o texto que enviei para oito editoras não foi aceito e isso só aconteceu por parte de uma editora cuja proprietária é negra ativista das causas negras: Maria Mazzarelo, da Mazza Edições. Mas posso afirmar que Omo-Oba Histórias de Princesas (2009) foi o livro a trazer a temática do empoderamento feminino através das princesas ali retratadas, revelando outras possibilidades de ser menina, mocinha e mulher, fora da lógica ocidental. Em 2020, temos inúmeras autoras e autores negros elaborando textos focados em personagens negras e em histórias capazes de elevar a autoestima das crianças negras.
Como deveria ser a formação dos professores para que eles tenham ferramentas pedagógicas para combater o racismo estrutural dentro da sala de aula?
A formação dos profissionais da Educação focada na temática das relações étnico-raciais deveria ser obrigatória nos âmbitos municipal, estadual e federal. Infelizmente, lidamos com o descaso das diversas secretarias e setores no tocante ao valor inestimável desse tipo de formação.
A sua obra também tem história em quadrinhos. É importante usar outras formas de linguagem para criar o hábito de leitura e de interpretação de texto nos alunos?
Assino contratos em que garanto minha liberdade em dar tratamento diverso, em plataformas múltiplas, aos meus textos, isto é, sou multiartista e preciso sentir-me livre para trabalhar meus textos no teatro, cinema, dança, animações, musicais, quadrinhos etc. Em breve, lançarei meu novo livro pela Companhia das Letras e virá no formato de quadrinhos e está ficando lindo: Tayó em novas aventuras.
Como despertar a curiosidade e o interesse dos alunos pela leitura?
Sempre criei o hábito de leitura nas crianças, jovens e adultos que por mim passaram quando professora, sendo uma excelente mediadora e colocando valor merecido nos livros: sempre afirmei que livros de qualidade são capazes de curar vidas, assim como a minha foi curada quando li O Baobá em O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupery, Capitães de Areia, de Jorge Amado, e Raízes, de Alex Haley. E hoje tenho a possibilidade de curar outras vidas com as histórias que tenho criado, e isso jamais terá preço.
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