PARA REPENSAR A ESCOLA

Como a gestão democrática promove a argumentação fora de sala de aula

Promover assembleias e outros momentos de expressão oral para conversar sobre questões do cotidiano faz da escola um espaço democrático e respeitoso

Ilustração abstrata sobre recorte de olhos em destaque sobre mesa com outros recortes e folhas de papel.
Ilustração: Julia Coppa/NOVA ESCOLA

Argumentar é uma capacidade que não pode ficar restrita a um ou outro conteúdo. É fundamental colocá-la em cena para além das paredes da sala de aula, propondo assembleias, fóruns, apresentações e outras oportunidades que reúnam os alunos para falar sobre temas diversos, como aqueles que dizem respeito à boa convivência na escola e fora dela, questões que envolvem a comunidade escolar - inclusive eventos - etc. 

Argumentar tem a ver com lidar com diferentes perspectivas, entender que as pessoas pensam diferente umas das outras e têm necessidades diferentes, e aprender a respeitar o outro. Desenvolver a capacidade argumentativa dos alunos é um desafio e esse problema acontece há tempos no Brasil. No livro Pensamento crítico: o poder da lógica e da argumentação (editora Rideel, 392 págs., R$ 50), Walter Carnielli e Richard Epstein consideram que os brasileiros têm uma “péssima educação argumentativa”.  

Por isso, organizar assembleias e outros espaços de fala na escola é tão importante. Além de dar voz para os estudantes, essas vivências permitem a eles aprender a identificar argumentos consistentes e elaborar os seus, reconhecer perspectivas antes não consideradas, repensar ideias e posições anteriores e exercer seu papel como cidadão num cenário democrático. 

“E é também uma chance excelente para mudar a cultura grafocêntrica, dando importância à expressão oral. É mudar o paradigma, porque garante espaço para os estudantes se expressarem para além dos conteúdos curriculares tradicionais”, explica Flávia Vivaldi, doutora em Educação e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem). 

Argumento e opinião são coisas diferentes

O temor de alguns educadores ao organizar espaços de fala para os alunos é desencadear brigas e trocas de ofensa. Isso pode acontecer, de fato, mas ainda assim, é fundamental investir neles justamente para corrigir essa rota de violência. A escola tem de ser um lugar onde as práticas democráticas acontecem - desde que seja, ao mesmo tempo, onde se aprende a participar delas. 

“Momentos como o de assembleia são férteis para trabalhar com questões operatórias mentais, lidar com o pensamento crítico divergente, perguntar para os estudantes como eles resolveriam determinado problema, fazê-los comparar, generalizar, ouvir o outro”, diz Flávia. O professor tem de agir como facilitador, intervir com reflexões, fazer perguntas para gerar desequilíbrios momentâneos. Tudo isso impulsiona a formulação de bons argumentos, dá a chance de os alunos aprenderem a coordenar diferentes perspectivas e aperfeiçoar a capacidade argumentativa.

Geralmente, os problemas aparecem quando as pessoas confundem opinião com argumento. E, definitivamente, essas são coisas diferentes. Telma Vinha e diversos autores, na obra Da Escola para a Vida em Sociedade - O valor da convivência democrática (editora Adonis, 248 págs., R$ 63,99), explicam que opiniões não precisam estar embasadas em conhecimentos ou justificativas. Já argumentos são o conjunto de razões de uma tese ou uma ideia que precisam ser apresentadas ao outro e confrontadas em um exame crítico. 

Outro cenário fértil para problemas é quando existe a crença de que é possível argumentar sobre tudo. Mas não pode ser assim: há coisas indiscutíveis. Não faz sentido, por exemplo, elaborar argumentos sobre a validade de se bater nas pessoas. Na verdade, ao conversar sobre isso, acabamos por expor pontos de vista diante de uma questão ética. Nesse caso, os educadores podem dizer, sem problema algum, que se trata de uma regra inflexível: não se bate nas pessoas, é inaceitável. No entanto, ainda de acordo com os autores da obra citada anteriormente, é perfeitamente possível sobre uma situação de violência conversar sobre o que significa tratar o outro com respeito, por exemplo - e está aí o bom exercício argumentativo.

Tudo anotado e conversado

O clima costumava ferver durante e após o intervalo para lanchar e brincar na sala da turma do 3º ano da EM Wilson Heidy Molinari, em Poços de Caldas (MG). As crianças desentendiam-se e não raro ofendiam umas às outras, xingavam as mães dos colegas e até se agrediam fisicamente. Apesar de as situações serem controladas na mesma hora por profissionais da escola, a professora Clícia Dalla Rosa sentia que era preciso ir além. “Os alunos voltavam para a sala irritados, agressivos. Não adiantava conter as brigas. Era preciso falar sobre elas, chegar a consenso, buscar soluções não violentas”, reflete. Então, reuniu a criançada e mostrou um caderno que ficaria em cima da mesa dela e neste todos poderiam registrar as ocorrências sobre as quais gostariam de conversar coletivamente - sem revelar nomes: somente o fato e como se sentiam por causa dele. As assembleias aconteceriam sempre às sextas-feiras. 

“Meu colega me desrespeitou no recreio”, “Um amigo me chutou e eu fiquei triste” e “Me xingaram”, foram alguns dos registros. No dia da assembleia, Clícia reunia a classe e lia tudo em voz alta, item por item, para ser discutido. “As crianças eram muito duras com as restrições sugeridas para os colegas que tinham feito algo de errado, queriam deixar o colega um mês sem recreio, por exemplo”, conta. E quando ela perguntava se isso resolveria, a meninada não sabia o que responder. “Eles tinham de aprender a pensar e conversar sobre o que estava por trás do que tinha sido feito, considerar o sentimento do outro e pensar no que poderia ter sido feito para resolver o problema de forma pacífica”, conta. 

E aí o trabalho de desenvolvimento de argumentação entrou em cena. Durante as assembleias, a professora passou a explicar que não podemos bater em ninguém e pedir que eles explicassem os porquês disso. Pedia também que buscassem soluções que não envolvessem violência, falassem sobre sentimentos - deles e dos colegas - antes de impor castigos. “E assim, o discurso evoluiu, ficou mais coeso. Aos poucos, as falas das crianças passaram a levar em conta os sentimentos, elas analisavam as situações e faziam propostas ponderadas, eram menos egoístas, menos cruéis”, finaliza. O resultado ficou evidente quando Clícia verificou que o caderno, cheio de registros no início do trabalho, passava dias sem ser requisitado pelas crianças quando o ano letivo se aproximava do fim.

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