História mostra que a felicidade da mulher não passa pelo casamento, mas pela Educação, diz Mary Del Priore
Em livro recém-publicado, a historiadora demonstra o poder da mulher de criar e reagir à violência ao longo do tempo e de se emancipar por meio do letramento
Quem foram as mulheres que resistiram à dominação, levantaram-se contra a violência, o machismo e fizeram história em seu tempo? A historiadora e escritora Mary Del Priori conta essas histórias no livro Sobreviventes e Guerreiras: Uma breve história da mulher no Brasil de 1500 a 2000 (Ed. Planeta, 256 págs., R$ 38,90). Na obra, Mary destaca um tema muito caro a todos nós, essencial para a construção dos marcos emancipatórios das mulheres, em especial as mulheres negras: a Educação.
A partir do século 19 a possibilidade de letramento, associada à tradição do pequeno comércio, torna-se uma importante forma de ascensão social, e, segundo a historiadora, elas aproveitam todas as brechas para fazer soar suas vozes. Resta a nós, agora, ouvi-las.
NOVA ESCOLA: Que histórias o livro conta?
Mary Del Priori: É um livro que procura mostrar que, ante o silenciamento, ante as representações de vários patriarcados – há o patriarcado ocidental cristão, mas também os patriarcados africanos, os indígenas, o dos imigrantes –, ante tudo que dá essa sensação de que a mulher foi silenciada, que são coitadas, muitas vozes se levantaram. As mulheres tiveram, ao longo da história, inúmeras oportunidades de fazer a sua voz ser ouvida.
Ao longo de todo o período que o livro abrange, 1500 a 2000?
Isso fica cada vez mais forte à medida que o século 20 foi chegando. Os patriarcados trouxeram violência, eu convido (com o livro) os historiadores a pensarem as construções sociais em torno dos homens também. Porque, ao mesmo tempo que temos toda uma literatura, teólogos, médicos, revistas que falam dos papéis femininos – da mãe, da dona de casa, do anjo do lar –, temos também nesses mesmos meios de comunicação papéis masculinos que vão sendo cada vez mais consolidados: o homem é o provedor, o pai, cuida da família, o homem tem de ser obedecido em casa. A ideia é entender como essas coisas vão dialogando para compreender a violência contra a mulher, e como a mulher reage a essa violência.
De que forma elas constroem essas formas de resistência?
É uma evolução. As mulheres aproveitaram todas as brechas. O mundo do trabalho – porque existe essa ideia de que em décadas passadas a mulher não trabalhava, que era ociosa – e o letramento sempre foram para as mulheres de todas as classe sociais, mas especialmente para as afro-brasileiras, uma forma de elevador social. No início do século 18, em Minas Gerais, a segunda classe mais poderosa da capitania eram as negras e pardas forras, que, graças ao trabalho, vão acumular pecúlio: vão ter casas, vão ter propriedade, vão ter joias, vão ter pratas.
Esse caso das mulheres negras trabalhadoras é interessantíssimo porque elas trazem isso da África. Em todas as regiões – Nigéria, Togo, Gabão – de onde vieram as escravizadas no Brasil há uma tradição da mulher no comércio, do pequeno comércio de retalhos, que vai ser reaproveitado para essas mulheres ascenderem. No início do século 19, 42% da população do Brasil já era mestiça e trabalhava nos mais diversos serviços, ou que já estão incorporados ao aparelho do Estado. E as mães têm papel muito importante nisso. São as mulheres que fazem seus filhos estudarem.
Poderia nos contar algumas dessas histórias?
O caso talvez mais emblemático disso é o de Francisco Salles Torres Homem, cuja mãe era uma quitandeira chamada Maria-você-me-mata. Ela vai fazer o filho estudar – ele era filho dela com um padre. Esse rapaz começa na medicina, passa para o jornalismo, do jornalismo vai estudar em Paris, lá ele funda a Academia Francesa de História, volta pro Brasil trazendo o romantismo, vai ser presidente do Banco do Brasil e termina como ministro da Economia. São essas biografias de afromestiços que contam muito o papel da mulher tomando o elevador social, investindo no letramento dos seus filhos e fazendo deles figuras nacionais. É assim até os dias de hoje. As mães que fazem os seus filhos estudarem, que se comprometem com os estudos dos seus filhos e que estão também na atividade econômica.
Histórias mais recentes também estão no seu livro.
O século 20 dá também para mulheres de todas as classes sociais – graças ao rádio, graças ao teatro – a oportunidade de sair do privado para o público. É o caso de inúmeras cantoras afromestiças que vão, inclusive, ficar ricas e conhecidíssimas no Brasil todo, como Ângela Maria, que era operária de fábrica. O trabalho da mulher sempre foi uma forma de ascensão social, que, somado ao letramento, de certa forma redime uma família inteira.
E essas mulheres também estudavam, ou o esforço era de educar os filhos?
Eu me lembro de estrangeiros que passavam pelo Brasil falando que as mulheres brasileiras são resignadas, não leem, não sabem falar línguas estrangeiras; isso é um olhar míope. Já no momento da Independência do Brasil você tem 186 baianas que escrevem para a arquiduquesa Leopoldina pedindo para ela apoiar a emancipação. Tem 50 e poucas paulistas que escrevem para a arquiduquesa apoiando esse movimento. Então temos mulheres letradas. Tem na Bahia, por exemplo, o caso de uma dona de engenho pequeno que faz um relato formidável do que foi a Independência da Bahia – que foi a verdadeira independência do Brasil. São Paulo foi o grito, mas na Bahia não, lá rolou gente morta, sangue, corpos na praia, foi uma luta sangrenta. Em 1822, essa dona de engenho escreve como uma verdadeira jornalista ao comentar em cartas o que foi a guerra na Bahia.
Você enxerga um caráter feminista nessas mulheres?
Nísia Floresta é a nossa primeira feminista. Ela se casa aos 13 anos, com 14 ela se separa e na sequência ela faz um libelo pela igualdade de mulheres e homens, onde defende uma ideia que vai atravessar o século 19 na pena de todas as grandes autoras: a importância da Educação para a mulher. A felicidade da mulher não passa pelo casamento, passa pela Educação, é a Educação que liberta. A igualdade só vem pela Educação.
É muito legal conhecer a história das abolicionistas, que participaram direta (como foi o caso da Chiquinha Gonzaga, fazendo consertos, levantando dinheiro para a alforria de escravizados) ou indiretamente (pela mão de pais e de irmãos). Essas mulheres entram no movimento abolicionista e vão para o palco, recitam versos, escrevem nos jornais.
Quais são os mecanismos usados no estudo de História que reforçam o apagamento da voz da mulher na História?
A voz dela tá aí. Precisa ouvir. Precisa estar atento ali pro documento que conta essas vozes. Se você só olhar a lista de escravizados da fazenda do Vale do Paraíba, só vai ver a vida de escravizados, só olhar processo-crime, só vai ver a violência contra a mulher. Vamos olhar o resto da documentação, que revela justamente esse burburinho que é a vida das mulheres, discreto mas muito presente. As mulheres organizam as suas famílias, ganham dentro de papéis que são tradicionais. A mãe de família até os anos 1920 e 1930 tem enorme poder. Ela decide sobre o casamento dos filhos, ela decide sobre a profissão dos filhos, ela vai viver do salário dos filhos, e você tem aí mais de 500 anos de história de mães, que, como diz Antonio Candido, são verdadeiras giragos, mulheres muito enérgicas, muito fortes, e que tomam o lugar do patriarca. A vida da mulher não é só sofrimento, não, as mulheres souberam reagir.
Na sua opinião, qual o papel da História e dos professores de História na desconstrução desses estereótipos sobre a mulher?
Revelar, por meio de uma história que se renova e que se faz cada vez melhor, com gente ótima trabalhando, que as teses estão aí para serem lidas. Esse trabalho exige uma atualização dos professores, lendo teses, lendo o que se está fazendo. A literatura brasileira há muitos e muitos anos dá um suporte enorme pra gente entender a história. Pegamos, por exemplo, todos os memorialistas da primeira metade do século 19 e vemos histórias fantásticas da República Velha. Nas histórias de Zélia Gattai, Erico Verissimo, José Lins do Rego estão as cenas mais cinematográficas da vida brasileira. Esse contato com a literatura, eu acho, tinha de ser feito em favor de duas coisas: de melhorar a leitura dos nossos alunos e de fazer da literatura um aliado do professor de História.
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