PARA REPENSAR A PRÁTICA

Como levar a cultura popular do Norte para as crianças de todo o Brasil

Em um momento no qual o noticiário foca na crise de Saúde na região, que tal apresentar, sem estereótipos, a diversidade e a riqueza de figuras como Mapinguari e Onça-Boi aos alunos?

Ilustração de duas alunas explorando com lupa e objetos de exploração, pegadas e marcações feitas por personagens fictícios.
Ilustração: Renata Miwa/NOVA ESCOLA

De monstros e seres fantásticos a lendas urbanas e princesas guerreiras, as personagens da cultura popular brasileira viajam pelos quatro cantos do país e atravessam décadas e séculos sem perder a autenticidade. Afinal de contas, quem nunca sentiu medo ao ouvir os nomes do Bicho-Papão ou da Loira do Banheiro quando criança? Ou, então, espanto e encanto ao ter notícias da bravura do Curupira ao defender florestas? Pode ser que você mesmo já tenha sentido vontade de “capturar” um Saci-Pererê ou de se esconder debaixo da cama para que a Cuca não viesse te pegar.

A verdade é que toda criança gosta de ouvir histórias, ainda que assustadoras ou protagonizadas por monstros e criaturas fantásticas. E disso o folclore brasileiro está cheio. Ainda que trabalhadas nas escolas geralmente em agosto, quando se comemora o Dia do Folclore, as figuras do imaginário popular são antigas aliadas dos professores na hora de ampliar o repertório cultural dos alunos e incentivar o gosto por contar e ouvir histórias de diferentes povos e locais do Brasil, atualmente tão associado à crise de Saúde e ao aumento no número de casos e mortes por covid-19. 

Neste contexto, a Região Norte, um dos celeiros do folclore nacional, está entre as mais afetadas pelo coronavírus e tem, frequentemente, aparecido nos noticiários por conta do caos na Saúde. Que tal aproveitar o ensino remoto para levar essas criaturas e seres fantásticos para a aula e reforçar com os seus alunos do Ensino Fundamental 1 que o Norte do Brasil é repleto de cultura e diversidade? 

Para Januária Cristina Alves, autora do livro Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro, a primeira coisa que o professor tem de fazer é desconstruir seus próprios preconceitos para, em seguida, trabalhar com o tema. Afinal, “ninguém é um lugar onde nunca foi”. “É necessário que o educador observe como ele se relaciona com esses mitos, como trabalha essas questões dentro de si, de sua imaginação, e como essas narrativas reverberam dentro dele”, afirma (leia a íntegra da entrevista aqui). Do contrário, segundo Januária, fica difícil levar essas histórias fantásticas para a sala de aula. 

Cuidados ao abordar o folclore da Região Norte

Durante muito tempo, o grande problema do ensino de folclore foi a frequente ausência de distinção entre mitos e lendas. É o que afirma o  jornalista e pesquisador em folclore Andriolli Costa. Segundo ele, outro erro desse processo foi resumir o folclore à cultura indígena, o que vale a pena ser destacado especialmente no contexto da Região Norte, onde vive parte significativa dos povos originais do Brasil. “É claro que, como todo grupo humano, os indígenas também vivenciam saberes tradicionais, e se são saberes tradicionais identitários, passados de geração a geração, são também saberes folclóricos”, frisa. 

Porém, de acordo com o estudioso, como as pessoas, em geral, têm pouco conhecimento sobre o termo, muitos tinham o entendimento de que o indígena é sinônimo de folclore. “Isso levou a muitos questionamentos contemporâneos sobre os indígenas, dizendo: não nos folclorize”, comenta. Em outras palavras, isso quer dizer que a existência dos indígenas não deve ser tratada como sendo limitada a um passado histórico, ressalta Andriolli. 

Então, o que deve ser evitado ao trabalhar o folclore da Região Norte? O professor deve tomar cuidado ao lidar com textos antigos (século 19 e parte do 20), esses seres são descritos como demônios, diabólicos e criaturas infernais, o que é muito comum em materiais dessa época, mas hoje entende-se que não corresponde à realidade”, alerta o pesquisador. 

Outro ponto de atenção é com a descrição física dos personagens que, muitas vezes, está ligada à percepção racista estética brasileira da época. “Quando a gente vê, por exemplo, um relato falando sobre a ‘feiura’ de um Saci, esse relato está ligado ao modo como características do povo negro eram vistas como feias”, explica. “O mito acompanha a sociedade e a cultura vigente, então não faz mais sentido ficarmos reproduzindo essa ideia”, reforça. 

Januária Cristina Alves também lembra a importância de mostrar para as crianças que há várias versões de uma mesma história e que elas mesmas têm a liberdade de criar suas próprias narrativas por meio da imaginação. “Com isso, o professor, ao mesmo tempo, trabalha a memória oral, a leitura, a escrita e a escrita criativa. As crianças, inevitavelmente, terão contato com essas histórias e, a partir daí, é expandir o repertório delas”, frisa Januária. 

Outra dica para levar o tema para as aulas é incluir as narrativas dos personagens do folclore no programa de leitura da turma o ano todo e não somente em agosto, quando se comemora o Dia do Folclore. Por exemplo, para trabalhar com as histórias do Norte, mapeie quais são as figuras mais conhecidas da região, como Boto, Cobra-Norato, Mapinguari, Matinta-Pereira e Onça-Boi, famosas principalmente no Amazonas, no Pará, no Amapá e no Acre (saiba mais aqui).

O educador precisa estar aberto para ver que o folclore traz, acima de tudo, histórias importantes de serem trabalhadas. O Dia do Folclore pode ser um pretexto, mas não pode ser o único motivo para levar esse tipo de conteúdo para sala de aula”, observa Januária.

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