ENTREVISTA

“A Região Norte tem como característica cultuar suas histórias e tradições”

Autora de obra sobre 141 personagens da cultura popular, Januária Cristina Alves defende que os professores desconstruam seus próprios preconceitos ao abordar temas do folclore brasileiro

Ilustração de símbolos que representam o norte.
Ilustração: Renata Miwa/NOVA ESCOLA

Ela nasceu no Sudeste do país, mas, ainda criança, mudou-se com a família para o Nordeste. Dizem que foi lá, nas terras encantadas do Agreste de Pernambuco, que Januária Cristina Alves começou a conversar com o Saci-Pererê, o Curupira, a Cuca, a Iara, o Boto e tantos outros personagens que transitam pela cultura popular brasileira. Aos 7 anos, ao ver um redemoinho se formar no horizonte, logo ouvia da mãe: “Olha, é o Saci!” E não demorava para os olhos da menina avistarem um gorro vermelho rodopiando no ar. 

A criança cresceu. Mas, ao que parece, é ela quem guia o caminho da adulta Januária, escritora e jornalista finalista do Prêmio Jabuti. Dos anos em que passou no Sertão pernambucano ficaram as lembranças dos pais, contadores de histórias, e as imagens das criaturas fantásticas construídas a partir de suas narrativas. Hoje, elas fazem parte de seu livro Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro (FTD Educação, 416 págs., R$ 74,85), ilustrado por Cézar Berje. A obra reúne lendas e mitos sobre 141 figuras populares em todas as regiões do país e serve como um prato cheio ao imaginário infantil. 

Uma das principais pesquisadoras contemporâneas do folclore e da cultura popular brasileira, Januária conversou com NOVA ESCOLA sobre esse universo fantástico que encanta não só gente pequena, como também os maiores. Confira a seguir:

NOVA ESCOLA: Quando e como você começou a pesquisar sobre o folclore brasileiro?

JANUÁRIA: Eu nasci em São Paulo, mas vivi dos 7 aos 21 anos em Pernambuco. Meus pais eram pernambucanos. Cresci numa família com muitas histórias de tradição oral. Meu pai fazia repente e cordel, então essas coisas estão na minha vida desde que me entendo por gente. São histórias fascinantes, não tem como uma criança não se encantar. Minha mãe também era muito habilidosa na contação, via um redemoinho e já dizia: “Olha lá, o Saci está chegando!” Eu cresci com uma imaginação muito aberta a essas histórias e vejo que meu interesse pelo folclore nasceu comigo. Meio que intuitivamente, a gente vai reunindo essas histórias. Comecei ganhando e comprando livros, colecionando essas narrativas. Tive a oportunidade de ter aulas com Ariano Suassuna, que foi um mestre da nossa cultura, e o valor que ele dava a isso foi me empoderando. À medida que você conta e reconta essas histórias, elas vão sendo suas também. São histórias muito potentes, que falam de coisas eternas, de modo que nunca terminam de ser lidas ou contadas, têm sempre alguma coisa para agregar. Se eu não tivesse sido criada no Nordeste, com certeza eu seria uma pessoa diferente, ainda mais em Pernambuco, estado que valoriza muitíssimo a sua cultura popular.

Quais foram os seus principais objetivos ao escrever o Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro

A ideia do Abecedário foi da minha editora, a Isabel Lopes Coelho, que queria fazer um livro diferente sobre o folclore, algo acessível para apresentar aos jovens. Ela sabia que eu pesquisava o tema e me convidou. Daí foi um longo processo de decidir como ia ser o livro, pois sabia que esse é um universo amplo de pesquisa, sabia das dificuldades de pesquisar folclore no nosso país, pois há poucos registros escritos e muita coisa oral e de diversos jeitos. Outra coisa que conseguimos fazer foi dar “cara” a muitos personagens que não tinham esses registros, por meio das ilustrações do Cézar Berje, que conseguiu ilustrar características de cada uma das figuras. Acredito que esses registros são uma contribuição efetiva que o Abecedário deixa para a nossa cultura, de manter essas histórias vivas. 

Como você se sentiu ao fazer as pesquisas para o livro? Houve dificuldades?

Eu encarei com responsabilidade, porque eu sabia que seria um livro que sairia por uma grande editora. As minhas fontes foram os grandes pesquisadores de cultura popular, então eu tinha de honrar esses que vieram antes de mim. Muitas coisas encontrei na internet, documentos digitalizados etc., com a preocupação de fazer uma checagem apurada dessas informações. Havia, além disso, o tempo todo uma questão de escolha. O tempo todo eu procurava as personagens femininas porque, como tudo, o mundo masculino impera na literatura. E foi uma delícia fazer essa pesquisa, porque tem personagens muito fortes. As mulheres retratadas no folclore estão muito longe de serem princesas da Disney, inclusive as princesas do folclore são muito fortes. Exemplo disso é a Bicho de Palha, que é a nossa Cinderela, uma moça que se disfarçou de palha para cobrir sua beleza. 

Ao todo, o livro reúne 141 personagens do nosso folclore. É possível dizer quantos são originários do Norte do país e o que eles revelam sobre essa região e seus povos?

Há muitos personagens que não são exclusivos de uma região ou de outra, eles estão em todas as regiões. É muito difícil dizer qual a origem exata, o que podemos afirmar é onde eles aparecem mais, onde são mais conhecidos. Algumas figuras, no entanto, são mais emblemáticas, como é o caso do Boto, que nos leva diretamente à Amazônia. Mas o folclore tem disso de não podermos dizer com exatidão que tal personagem veio daqui ou dali. O que encontramos são pistas e tentamos fazer uma ficha técnica no final de cada verbete do livro. Vale lembrar que esses 141 personagens são apenas alguns dos tantos que não consegui incluir no livro. 

Acho que o que é mais relevante nisso tudo é entender que a Região Norte é muito rica. Digo que o Norte e o Nordeste são regiões muito ricas, onde as pessoas têm um imaginário muito fértil. São regiões que têm como característica cultuar as suas histórias e suas tradições e acho isso muito precioso. Manaus, por exemplo, é uma cidade cosmopolita com gente do mundo inteiro. Ou seja, as cidades cresceram, mas essas tradições não se perderam. O povo brasileiro é um povo contador de histórias, independentemente da região. 

Qual é a importância de ampliar o conhecimento das crianças sobre folclore e desconstruir estereótipos? Ao levar o tema para a sala de aula, é recomendável tomar alguns cuidados para não cair no “lugar-comum”? 

Por conta, principalmente, dos últimos tempos, em que enfrentamos uma série de censuras, acho que a primeira coisa que o professor tem de fazer é desconstruir seus próprios preconceitos, ver como se relaciona com esses mitos, como trabalha essas dentro de si, de sua imaginação, e como essas narrativas reverberam dentro dele. Eu tive um professor que dizia que “ninguém é um lugar onde nunca foi”. Então, se o professor não se prepara para isso, se não trabalha dentro de si o que essas narrativas provocam, fica mais difícil chegar numa sala de aula aberto ao que virá das crianças. 

Outra coisa importante é colocar para elas que há várias histórias sobre um mesmo personagem, como as do Saci e as do Curupira. Para além de todas que já existem, nós podemos ainda inventar a nossa, porque isso é o exercício da imaginação. O professor, ao mesmo tempo, trabalha a memória oral, a leitura, a escrita, a escrita criativa. Isso se ele souber encarar esses mitos com elementos do imaginário. Acredito que o único cuidado que o professor deve ter é este: colocar-se aberto ao fluxo dessas histórias e elas virão. As crianças, inevitavelmente, terão contato com elas. A partir daí é expandir o repertório delas. 

Quais caminhos os professores podem seguir para abordar o tema, não apenas em datas comemorativas?

Geralmente, trabalha-se o folclore uma vez por ano, em agosto, mas há uma riqueza muito diversa que pode ser incluída nos conteúdos ao longo de todo o ano. Isso entra no programa das leituras que o professor faz com seus alunos e é importante incluir as histórias do folclore brasileiro. Por que, por exemplo, só podemos cantar cantigas em festa junina? Ou frevo só no carnaval? Não precisa ser assim, isso empobrece as nossas relações. Se o professor estiver aberto a isso, ele vai ver o quanto os alunos vão trazer suas histórias e experiências também. O educador precisa estar aberto para ver que o folclore traz histórias, acima de tudo, histórias importantes de ser trabalhadas. E aí, obviamente, a data pode ser um pretexto, mas não pode ser o único motivo para levar esse tipo de conteúdo para a sala de aula.

O seu livro foi usado como fonte para a produção da série Cidade Invisível, da Netflix, que recebeu tanto críticas quanto elogios pela tentativa de trazer para um contexto contemporâneo histórias do folclore. De que forma o conteúdo da série pode ser aproveitado para ampliar a visão sobre o nosso folclore?

Eu disse para o diretor Carlos Saldanha: “Faça a sua história e está tudo certo, porque a história também é sua, é de todos nós!” Uma obra de ficção é uma obra de ficção. Acho que a abordagem da série foi brilhante, pois conseguiu preservar o cerne de cada personagem. São 190 países escutando nossas histórias. A série não é recomendada para crianças, mas os professores podem assistir para ampliar o olhar, como possibilidade de recriação dos personagens, o que é mais precioso nas histórias de tradição oral. Dessa forma, espera-se que ele se sinta solto para inventar e criar a sua. Pode, sim, ser uma fonte de inspiração.

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