Silvia Colello: "Os pais não podem assumir a função de um professor na alfabetização"
Autora do recém-lançado "Alfabetização: O quê, por quê e como" defende que, na pandemia, os pais atuem como mediadores, e enfatiza a importância do uso concreto da língua no processo de letramento
Na Educação, é comum ensinar como cada um aprendeu. Agora, durante a pandemia de covid-19, a família é parte fundamental do processo. E a alfabetização está no centro das angústias do ensino remoto. Ela integra o início do contato com a cultura escolar, com o aprendizado formal, com os mecanismos necessários para lidar ativamente com o mundo.
E é essa a principal preocupação da especialista em alfabetização Silvia M. Gasparian Colello, doutora e livre-docente na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Alfabetização – O quê, por quê e como, lançado recentemente pela Summus Editorial. Ensinar letras e sílabas é parte do processo, é claro, mas por que a criança aprende a ler? Qual o sentido do mundo letrado para ela? Para Silvia, essas questões nem sempre são contempladas em avaliações de aprendizado. São perguntas que devem nortear as práticas com as crianças, a fim de criar uma geração capaz de ser autora do seu pensamento. Confira:
NOVA ESCOLA: No seu livro Alfabetização - O quê, por quê e como, você sistematiza a essência do pensamento de educadores socioconstrutivistas no que diz respeito a aprender a ler e a escrever. Qual é a vantagem em relação aos métodos mais tradicionais
SILVIA COLELLO: Nas escolas prevalecem estratégias de ensino como "ba, be, bi, bo, bu", que são estratégias, do meu ponto de vista, que não atendem mais a nossa sociedade. Muitos de nós aprendemos assim, é verdade, mas para cada um que aprendeu assim e superou a mera decifração, codificação e decodificação, temos uma legião de analfabetos funcionais. As crianças entram na escola muito curiosas, desejosas, e com o passar do tempo vão ficando entediadas. Quanto mais ensinamos com métodos formais, mais roubamos dos alunos a vontade, o vínculo orgânico que eles têm com a língua, e isso é uma injustiça. Alfabetizamos, mas não ensinamos o sujeito a ser autor, a ser senhor da sua própria palavra, a ter uma postura crítica e ser um verdadeiro intérprete.
NE: É como se a alfabetização não estivesse cumprindo o seu propósito?
SC: Existe uma diferença muito grande entre escrever e produzir textos. Isso porque a produção textual é um processo de elaboração mental. É um trabalho ativo. Temos de controlar o que escrever e como. A leitura e a escrita constituem-se, em primeiro lugar, como organizador do pensamento. Aquela criança que tem o domínio da escrita pode organizar, comparar. Aprender a ler e a escrever não é só dominar o sistema, mas elaborar uma série de competências de instrumento mental, para assim poder lidar com o mundo letrado. Isso tem um impacto também não só cognitivo, mas também, afetivo. A língua ajuda a organizar o pensamento. Ela é constitutiva da pessoa.
NE: Com a pandemia, as crianças estão sendo alfabetizadas em casa, não sem a necessidade de ajuda das famílias, que não têm formação para essa tarefa.
SC: Há os pais que não querem saber de participar da educação formal, os pais desesperados para ajudar, e que, no seu desespero, partem do princípio “assim aprendi, assim ensinarei” e começam a fazer ditado, cópia. Com essa postura eles acabam contrariando, muitas vezes, a proposta da escola. A língua escrita é tributária do modo como você aprendeu. Corremos o risco de logo no início (anos iniciais da escola) criar aversão nos alunos, que depois é difícil de corrigir. É aquele menino que fala “eu odeio portugues”. Ele até aprendeu, mas ele odeia.
NE: E como a família pode atuar da melhor forma?
SC: Os pais podem até informar em razão de uma pergunta da criança, mas não dever assumir a postura de centralizadores no processo de aprendizagem.Essa pessoa da família [responsável pela educação] tem de funcionar como um mediador. Primeiro vai criar as condições ambientais e tecnológicas para que as crianças possam interagir com o professor. Segundo, vai funcionar como um apoio para responder aos problemas. Quando a criança pergunta “essa palavra é com n, ou com m?”, “aqui, o que é letra maiúscula"... Os pais informam em razão de uma pergunta da criança, mas não ser a pessoa que passa o conhecimento. A autoridade dos pais nesse momento gera muito estresse, e é ruim para todos. O planejamento de aulas, de ensino, se recupera, mas a relação entre as pessoas da casa é muito mais complexa.
NE: O ensino em casa, com pouca intencionalidade, pode prejudicar o interesse das crianças pela alfabetização, por aprender?
SC: Na pandemia há um prejuízo inegável que incide sobre o ritual, a entrada no ensino, na cultura escolar, não só pela alfabetização. Esse ritual está sendo fragilizado pelo ensino remoto e híbrido. A alfabetização acontece a partir de rodas de conversa, de escritas coletivas, de debates a partir de um livro junto, da atividade cooperativa. O trabalho em sala de aula é insubstituível, pelo meu ponto de vista. Esse debate deve partir das escolas. A gente não pode esperar que as famílias tenham essa clareza. A escola tem de informar o que prioriza no processo de alfabetização e como os pais podem atuar na mediação, deixando explícito que eles não são os professores.
NE: Têm chegado até as escolas muitos relatos de mães e pais estressados com a tentativa de alfabetizar em casa. Os relatos são de muito desgaste. Qual o impacto disso na formação da criança?
SC: Traz um impacto muito negativo para a alfabetização. A alfabetização tem de ser construída a partir de um processo de encantamento, de envolvimento. Quando os pais ficam ali só forçando para eles fazerem a lição, copiarem o exercício, insistindo que eles têm de fazer, têm de entregar, rompemos com o encantamento. Rompemos com o desejo de aprender, de lidar com esse grande mistério que é a língua. A criança não pode ser inibida, ter medo de errar. A língua é a porta aberta para compreender o mundo e para entrar num mundo imaginário, que é o da literatura, e que é super motivador. Se isso é rompido, a escrita não tem mais razão de existir. Isso pode estar acontecendo agora com os pais, em casa, mas acontece muito dentro da escola também. A alfabetização não pode ser uma sucessão de tarefas, e é assim que ela tem sido aplicada na pandemia. Ela tem de se constituir como a inserção no mundo letrado. São muitas coisas que estão em jogo.
NE: O analfabetismo funcional, que também é tema do seu livro, é fruto dessas muitas coisas que estão em jogo, mas que estão sendo negligenciadas?
SC: O analfabetismo funcional tem muito a ver justamente com o modo como as pessoas aprenderam a ler e escrever. Em geral com os métodos que dão muita ênfase para a escrita, e pouca ênfase para o uso da escrita. Desde a Educação Infantil a gente tem de favorecer o uso da língua escrita. Os métodos tradicionais funcionam com a lógica de que primeiro você aprende a ler e escrever e depois você vai escrever o que te interessa. Primeiro você aprende ba be bi, e depois você vai escrever uma carta de amor. Há crianças de 5º ano, 6º ano, que se sentiam inibidas de escrever. Elas dizem que não conhecem a gramática, que não sabem fazer. É como se eles não tivessem a autorização formal para ler e escrever. É algo como se quando somos aprendizes não podemos fazer. Cria-se uma divisão muito clara entre aprender e fazer.
NE: E como a abordagem socioconstrutivista favorece essa alfabetização integral?
SC:Na abordagem socioconstrutivista aprendemos a ler e a escrever, letrando. Isso significa que ao mesmo tempo que a criança aprende o sistema, ela aprende a lidar com os usos e com as práticas sociais. Aprende-se com o mundo letrado. Aprende-se a escrever escrevendo... e em contextos de usos reais da língua escrita. As escolas artificializam muito o uso da escrita. Escrevemos a receita de um bolo que vamos efetivamente fazer. Escrevemos um e-mail que vai ser efetivamente enviado. O desafio da escola é romper com o muro que separa a escola do mundo.
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