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“É um novo tempo para pensar a Educação local”: como duas escolas indígenas têm atuado na pandemia

Educadores relatam dificuldades de infraestrutura para colocar em prática o ensino remoto e refletem sobre a necessidade de se rever práticas e ampliar o debate com as comunidades em nome do futuro dos alunos

Ilustração de professora indígena sentada em sala de aula.
Ilustração: Ana Carolina Oda/NOVA ESCOLA

Após ocupar por seis anos o posto de diretora da escola na aldeia Piebaga, da etnia bororo, localizada em Santo Antônio de Leverger (MT), Luciene Jakomearegecebado, nascida e criada no local, voltou a lecionar para os anos iniciais do Fundamental na mesma escola em 2021. Junto a ela, atuam ali quatro professores do Ensino Médio e EJA (Educação de Jovens e Adultos). A escola tem cerca de 30 alunos. Desde o ano anterior, com a suspensão das aulas presenciais, a docente indígena já havia identificado as dificuldades específicas pelas quais passavam as crianças da aldeia na pandemia. 

Além da falta de lugar na própria casa para desenvolver as tarefas remotas e da limitação dos pais em apoiar as atividades, Luciene aponta outra grande barreira: a dificuldade na compreensão da língua portuguesa. Na escola da aldeia, o ensino é bilíngue, com orientações dos professores dadas em português e na língua bororo. Sem esse apoio oral, crescem as limitações na aprendizagem: “As crianças dos anos iniciais não têm domínio do português porque elas crescem ouvindo a língua local, que é a tradição local para preservar a ancestralidade. Apenas na escola é que são iniciadas no português”, explica. Daí o problema dos alunos pequenos na realização das atividades remotas.

Em contato com a Secretaria Municipal de Educação, a escola pediu liberação para que alunos da aldeia pudessem frequentar as aulas presencialmente apenas por alguns dias na semana, mas a solicitação foi negada pelo risco sanitário. Luciene conta que a população da aldeia está bastante receosa com a disseminação da covid-19 mesmo sendo o local distante dos principais centros urbanos – cerca de 300 quilômetros da capital, Cuiabá, e 90 quilômetros de Rondonópolis, a cidade mais próxima. Ainda não houve um caso reportado ali, mas a apreensão é grande. “Os bororo têm funerais que incluem duas a três semanas de rituais sagrados. Pensar que isso não poderá ser feito caso algum membro morra dessa doença causaria muito sofrimento a todos”, conta. Apesar das complicações, Luciene e os demais docentes continuam a planejar e colocar em prática o sistema de entrega e retirada quinzenal de atividades dos alunos.   

“Uma escola indígena tem uma organização pedagógica muito diferente de uma escola não indígena. O trabalho do professor indígena é baseado na presença e na oralidade para transmissão de temas importantes para a comunidade. Aprende-se muito experimentando, e, por isso, as aulas remotas estão sendo um grande desafio para todos”, analisa Rossini Pereira Maduro, da etnia borari, assessor pedagógico da Secretaria Municipal da Educação Escolar Indígena, em Manaus (AM).

Pandemia traz grandes limitações e novas possibilidades

“Essa pandemia veio agravar o que já estava ruim”, avalia Tarcísio dos Santos Luciano, da etnia baniwa, coordenador do projeto Escola Ai Watura, que reúne escolas indígenas espalhadas por 23 comunidades, localizadas ao longo do Rio Negro, na cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM). 

Há 15 anos na função, Tarcísio conta que o projeto já sofria com as grandes distâncias que limitavam a presença dos alunos; a precariedade da organização das escolas, com a presença de um único professor para ministrar todas as aulas, além da limitação de infraestruturas de energia elétrica e de acesso à internet. Em planejamento conjunto com as comunidades locais, colocou-se em prática o ensino remoto com professores indo até as casas dos alunos para entregar atividades ou então com alunos indo até as sedes escolares. Apesar dos esforços, os resultados foram ruins: “Acabamos de fazer uma avaliação entre os alunos e percebemos que eles pouco aprenderam nesse último ano”, avalia.

Mas o momento tenso está sendo encarado como uma ruptura importante para o planejamento da Educação local. Tarcísio conta que na busca por melhorar o ensino muitas comunidades pensam que passada a pandemia o momento será de avaliar novas metodologias e práticas possíveis para a Educação nas aldeias. Uma delas, por exemplo, é a futura adoção de materiais didáticos próprios criados pelas comunidades.

“É um novo tempo para pensar a Educação local, de saber como nossas crianças indígenas poderão ter uma educação melhor”, avalia. “Uma política educacional tem que ser construída com base em discussões com a comunidade. Todos devem colaborar e sugerir ações para reforçar o conhecimento indígena como prioritário. Uma avaliação como esta não deve se limitar a uma equipe pedagógica, mas incluir a participação dos membros da comunidade.” 

Entre problemas logísticos e de concepção pedagógica, as escolas indígenas retratadas trazem à tona a necessidade da maioria das escolas de mesmo perfil: a busca dos profissionais por soluções exclusivas para atender às demandas particulares de cada comunidade espalhada pelo país.

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