PARA REPENSAR A PRÁTICA

“Quem colocou essas pedras nessa rua?”: investigue com a turma a herança da escravidão em sua cidade

Inspire-se em dois professores que desenvolveram projetos e atividades para descortinar o passado de trabalhos forçados e violência contra os negros escravizados nas ruas e pontos históricos de seus municípios

Ilustração de crianças sentadas no chão, olhando para mapas e fotografias de cidades históricas de minas gerais.
Ilustração: Ana Carolina Oda/NOVA ESCOLA

Em 2013, João Paulo Araújo, professor de História e agora coordenador pedagógico da rede municipal de ensino de Leopoldina, norte de Minas Gerais, fez uma provocação a seus alunos sobre uma rua próxima à escola, conhecida como Rua das Pedras. “Vocês sabem quem colocou essas pedras aqui, e como era feito esse trabalho?”, perguntou à turma. Mesmo Leopoldina sendo o município mineiro que chegou a ter mais ex-escravizados após a Abolição, as crianças não sabiam responder ao professor. 

Não sabiam também que o bolinho frito de feijão-fradinho (acarajé), veio da Nigéria, onde se chama akara, e foi trazido ao Brasil no período colonial pelos africanos, assim como nunca tinham pensado que em sua cidade não há ruas com nome de negros e de mulheres. 

Foi assim que João Paulo criou uma espécie de rota da herança da escravidão de Leopoldina e mostrou aos alunos que o 13 de Maio, data em que há 133 anos foi sancionada a Lei Áurea, não é uma abstração dos livros didáticos, mas faz parte de suas vidas. 

“Não precisei pesquisar muito. A cultura trazida pelos africanos está em toda parte, ainda que como ausência. Os alunos conheciam a rua, a comida, a capoeira, mas não entendiam isso como herança do período da escravidão. Quer dizer, a Rua das Pedras foi feita por pessoas que eram muito exploradas”, explica o coordenador. 


A metodologia usada por João Paulo em Leopoldina foi: 

1. Selecionar objetos de conhecimento do próprio território, a partir do patrimônio, e dividindo entre patrimônio material e imaterial. 

2. Fazer um diagnóstico sobre o que os alunos compreendem desses objetos, promovendo um debate com eles sobre as vivências deles com esses objetos. 

3. Propor uma intervenção sobre esses objetos. 


“A cidade não para, a cidade só cresce”:
Uma proposta para o 5º ano

Com os alunos maiores, de 5º ano, Ednan Santos, professor de História e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do ABC, sugere uma atividade sobre o território a partir de plataformas como o Google Earth. A ideia é de que os alunos pesquisem os bairros da cidade a partir das imagens – mapas, fotos, cartografias – e também índices sociais básicos, como a quantidade de negros e brancos em cada um, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a escolaridade, além de reportagens que falem da expectativa de vida nesses bairros. 

“Primeiro trabalhei com a música A Cidade, do Chico Science, que começa com aquela batucada que eles amam. Dá para dividir em grupos e pedir para eles pesquisarem, ou levar uma seleção prévia. Os alunos levam os bairros que conhecem, e os alunos da periferia levam outras quebradas que poucos conhecem. A partir disso, analisamos por que alguns bairros são planejados e outros não, e daí vamos analisando juntos que a libertação dos escravizados não foi plena; a História do Brasil tá aí, e a gente tá dentro dela”, conta. 

Ednan ressalta que é preciso cuidado com a apresentação dos dados. “Eles são os indicativos de que a escravidão deixou marcas, e que os bairros mostram isso, mas as crianças curtem conhecer as coisas pela Arte e pela Teconologia, então é legal ter sempre bastante imagens, músicas, sempre que possível o uso de plataformas digitais e a troca entre eles.”

Como abordar a escravidão nos primeiros anos do Fundamental

Nos primeiros anos do Ensino Fundamental, João Paulo recomenda que os professores abordem o tema a partir da linguagem. Ele sugere a escolha de frases de autores negros que falem do período, especialmente no contexto da alfabetização dos alunos. Ou então, com o 2º e o 3º ano, a partir dos gêneros textuais, escolhendo poemas e crônicas de autores e autoras negros e negras. A proposta fica ainda mais rica se a pesquisa prévia levar a autores que sejam da própria comunidade ou cidade. 

A cidade também precisa ser lida

Um bom exemplo de como trabalhar a herança da escravidão a partir dos endereços de uma cidade está em São Paulo. O escritor e jornalista Abílio Ferreira é um dos responsáveis pela preservação de marcos de memória dos negros na região da Liberdade, como a Capela dos Aflitos. Ele promove também a Marcha Noturna pela Democracia Racial, que percorre, sempre em 12 de maio, ruas e pontos históricos marcantes da luta negra pelo fim da escravidão na capital paulista. 

“A [urbanista] Raquel Rolnik, na coleção Primeiros Passos, define a cidade como uma escrita. Se ela é uma escrita, ela pode ser lida. As crianças precisam se inspirar, ajudar a investigar a cidade a partir de suas trajetórias, das suas famílias. É preciso juntar essas contribuições com uma pesquisa prévia para que a construção dessa narrativa seja um processo inspirador, transformado em ação”, reflete o escritor.

Mais sobre esse tema