Compartilhe com os alunos a história de Baquaqua e seu relato em primeira pessoa da escravidão
Trabalhe com os alunos o sofrimento do cativeiro a partir da história de quem tem rosto, vontades e sentimentos
O 13 de maio, Dia da Abolição, é importante tópico de estudos para crianças porque abre a possibilidade de falar da escravidão como um crime contra a humanidade. Embora a transposição do tema para o Fundamental 1 não seja simples, é fundamental que as escolas, redes de ensino e professores estejam abertos a esse diálogo com os alunos da etapa.
Há algumas chaves para abordar o assunto, duas delas tratamos aqui, que é a arte como meio para reflexão, compreensão e expressão desse tema, bastante sensível, e também os relatos e biografias como forma de gerar empatia nos alunos.
É claro que é possível falar dos engenhos de açúcar, do trabalho na mineração, mas levá-los para dentro daquele contexto é outra história. Essa história precisa ter rosto, o nome de alguém que sente saudade da mãe, que tinha gostos.
“A partir das histórias do indivíduos que vivenciaram o período a gente dá um zoom para pensar a estrutura da escravidão e entendê-la para além de contextos econômicos e ideológicos”, explica Bruno Véras, historiador responsável por um projeto que resgata a história de Baquaqua, negro escravizado no Brasil e que em 1864 publicou a própria briografia, o único relato conhecido em primeira pessoa de um ex-escravizado no Brasil.
Quem foi Baquaqua?
A saga de Mahommah Gardo Baquaqua, originário do Norte da África, teve início por volta de 1820. Filho de um comerciante de Dijougou (hoje na República do Benin), educado em uma madraça (escola islâmica), o menino letrado e com bons conhecimentos de matemática acompanhava mercadores nas rotas que ligavam o então califado de Socoto e o extinto Império Ashanti, que rivalizavam no tráfico de escravizados e no domínio de regiões da África Ocidental.
Capturado pelo Ashanti, foi levado a Uidá (Benin), um dos principais portos para tráfico de escravos pelo Atlântico. “Quando estávamos prontos para embarcar (para as Américas), fomos acorrentados uns aos outros e amarrados com cordas pelo pescoço e, assim, arrastados para a beira-mar. Uma espécie de festa foi realizada em terra firme naquele dia. Não estava ciente de que essa seria minha última festa na África. Feliz de mim que não sabia”, relata Baquaqua.
Sua descrição do porão do navio negreiro é muito forte: “Fomos arremessados, nus, porão adentro, os homens apinhados de um lado, as mulheres de outro. O porão era tão baixo que não podíamos ficar de pé, éramos obrigados a nos agachar ou nos sentar no chão. Noite e dia eram iguais para nós, o sono nos sendo negado devido ao confinamento de nossos corpos”.
No século 19 a travessia do Benin até a costa brasileira levava cerca de 40 dias. Os navios negreiros – também chamados de “tumbeiros”, em alusão a tumba, sepultura – registrava uma taxa de mortalidade média de 20% entre os africanos confinados nos porões. Transportavam entre 400 e 500 pessoas – a superlotação era uma estratégia para evitar prejuízos decorrentes das mortes ao longo da passagem pelo Atlântico.
A fome e a sede eram a regra, até porque os porões abarrotados de pessoas não comportavam os suprimentos necessários para alimentar tanta gente por tanto tempo. Em muitos dias, os escravizados não ingeriram absolutamente nada. “Houve um pobre companheiro que ficou tão desesperado pela sede que tentou apanhar a faca do homem que nos trazia água. Foi levado ao convés, e eu nunca mais soube o que lhe aconteceu. Suponho que tenha sido jogado ao mar”, conta Baquaqua.
Baquaqua desembarcou em Pernambuco, em 1845, onde foi vendido a um senhor de terras de Olinda. “O fazendeiro tinha grande quantidade de escravos, e não demorou muito para que eu presenciasse ele empregando livremente seu chicote contra um rapaz. Essa cena causou-me uma impressão profunda, pois, é claro, imaginei que em breve seria o meu destino.”
Foi vendido a um padeiro que o forçava a carregar pesadas pedras na cabeça, depois o obrigava a vender pão, sob a ameaça da chibata. O africano tentou fugir, mas também contemplou as hipóteses de suicídio ou de matar seu senhor, antes de ser vendido a um comerciante do Rio de Janeiro que o levou para o Rio Grande do Sul, onde passou a trabalhar em um navio empregado no comércio de charque.
Em 1847, a bordo de um navio carregado de café, Baquaqua aportou em Nova York, logo após o estado americano ter abolido a escravidão. Foi libertado por um grupo de abolicionistas locais e transportado pela “ferrovia subterrânea” – rede clandestina que levava fugitivos para fora dos Estados Unidos.
Seu primeiro destino foi o Haiti, primeiro país das Américas a abolir a escravidão, em uma revolução concluída em 1804. Depois, ele voltou aos EUA e, finalmente, estabeleceu-se no Canadá, onde ditou suas memórias ao abolicionista irlandês Samuel Moore, em 1854.
O último paradeiro conhecido de Mahommah Baquaqua foi o porto britânico de Liverpool, em 1857, onde estudiosos acreditam que ele buscava transporte para retornar à África.
Como levar Baquaqua aos alunos da etapa
Um dos projetos de que Bruno faz parte é Fragmentos da Memória, organizado a partir de um site em português e inglês. O projeto convida artistas de todos os continentes, sendo eles africanos ou descendentes de africanos, para conhecer a biografia de ex-escravizados, também de todos os continentes, que viveram a escravidão em diferentes partes do mundo. A partir dos relatos, documentos e pesquisas dos historiadores envolvidos, eles são chamados a refletir sobre esse material, e por último a desenhar essa história.
No projeto, Baquaqua foi representado pelo artista paulista Pablo Parra, que possui um estilo pop, com traços e cores fortes, numa estética punk. Essa é a parte virtual do projeto de Arte e Educação do Fragmentos de Memória, e isso pode ser transformado em prática na sala de aula com os alunos.
“Da mesma forma que o artista teve de aprender, sentir e depois representar as histórias desses personagens, as crianças também podem. A arte é uma forma potente e eficiente de propor o assunto para os pequenos. Eu, pessoalmente, acredito que seja a melhor forma”, reflete o historiador.
Confira o projeto aqui.
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