PARA REPENSAR A PRÁTICA

Como abordar os países africanos que também falam português e suas relações com o Brasil

A língua pode ser um canal para conectar estudantes de Anos Iniciais com a diversidade de países da África como Angola e Moçambique, além de contribuir para combater preconceitos sobre o continente

Ilustração abstrata dos mapas do Brasil e da África, onde é possível ver as diversas manifestações culturais dispostas ao longo dos territórios.
Ilustração: Karlson Gracie/NOVA ESCOLA

“Sabia que, do outro lado do Oceano Atlântico, lá na África, existem países que falam português parecido com o nosso?” A pergunta feita pode ser um bom tema para iniciar os estudantes de Anos Iniciais do Ensino Fundamental na compreensão da diversidade social e cultural da África, e da importância desta matriz fundamental para a formação brasileira.

Marca da colonização, a língua portuguesa é o elo entre o Brasil e seis países africanos – Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe –, que, juntos, formam a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, organização internacional constituída por nações lusófonas, que ainda inclui Portugal e Timor-Leste, na Ásia.

Dessa forma, o português pode ser um canal condutor, um cartão de visitas para a África aos olhos dos estudantes daqui. Ter o mesmo idioma conectou estudantes brasileiros e angolanos em projeto colocado em prática, em 2017, pela professora Maria Isabel Baptista Barbosa Oliveira, com o apoio da professora de Língua Portuguesa Lídia Bilia Camargo, em turma do 6º ano da Escola Estadual Doutor Samuel de Castro Neves, localizada em Piracicaba (SP). Os alunos foram convidados a se corresponder, por meio de cartas, com estudantes da Ilha do Mussulo, localizada em Luanda, capital angolana. Depois de apresentar o país, a professora Maria Isabel, que é angolana, pediu aos brasileiros que escrevessem textos em que se apresentassem e perguntassem sobre como é a vida no continente africano. O projeto fazia parte de pesquisa para sua tese de mestrado em Educação Sociocomunitária. 

Com as cartas e autorizações dos pais e do governo brasileiro, ela viajou até Luanda para entregá-las aos estudantes da escola Pequena Chama. Lá, entregou as correspondências e recolheu as respostas angolanas, apresentadas aos estudantes brasileiros. “Foi muito interessante observar como eles acharam curioso o texto escrito e imaginado no português brasileiro ser transformado em ‘outro texto’, agora cheio de emoções e idiossincrasia do outro. Alguns dos alunos chegaram a chorar quando viram a importância e o impacto que suas cartas tiveram para as crianças angolanas”, conta Isabel.

Além de exercitar o gênero carta, a professora Lídia, que apoiou a atividade com sua turma na escola de Piracicaba, conta que a troca de correspondências também instigou o olhar dos estudantes brasileiros para outra cultura, gerando muitas perguntas sobre o país e sobre a percepção de mundo, além de comentários acerca das diferenças entre eles, inclusive as físicas. A escola brasileira está localizada em região que recebeu muitos imigrantes tiroleses, ou seja, de pessoas brancas. Na sala, eram apenas duas crianças negras, quando na sala da Ilha do Mussulo, todas eram pretas. “A atividade também estimulou essa discussão acerca da percepção deles sobre a questão racial”, conta.

Olhar ampliado para a língua

Para Ana Paula dos Santos de Sá, pesquisadora do Departamento de Educação da UFSCar (DEd/UFSCar) e doutora em Linguística Aplicada pela Unicamp, desde cedo já é possível estimular atividades na escola para mostrar as contribuições africanas para o português brasileiro. “Falamos muito das semelhanças, mas é interessante também tratar das diferenças entre as línguas. Como brasileiros, refletimos pouco sobre essas incorporações, assim como fazemos com as colaborações indígenas”, analisa. Neste Box, preparamos uma lista com 20 palavras usadas no Brasil e que são originais de grupos linguísticos africanos bantu e kwa, falados por africanos escravizados trazidos para o país (confira aqui).

O tema, aliás, pode instigar sobre outro: a indicação de que o português é língua oficial dos países africanos citados, mas é usado mais comumente em situações formais, pois na vida cotidiana a fala é guiada por línguas nativas. Nesse contexto entra o uso da sigla Palop, que significa Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa – indicação que marca questionamento sobre a existência de fato de uma lusofonia, já que a língua portuguesa existente nos países africanos é reflexo de um projeto de dominação europeia nas colônias africanas, a partir do século 15, que sufocou muitos dos idiomas daqueles países.

“Interessante notar como as literaturas africanas desses países refletem esses usos, com o português oficial registrando muitos cruzamentos com as línguas locais. Há escritores africanos que até brincam com isso em suas produções, como o escritor angolano Ondjaki, que inclui glossários em seus livros para destacar expressões nativas exploradas”, analisa. Clique aqui para conhecer mais sobre a obra deste de outros autores africanos e veja uma sugestão de atividade sobre o reino do Ndongo, que ocupava a atual região de Angola

Olhar ampliado para o continente africano

Desde a aprovação da Lei nº 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos currículos do Ensino Fundamental e Ensino Médio, o Brasil deu um passo legal e formal para a inclusão dos temas na escola. Mas, apesar da disposição, muitos docentes e instituições ainda têm dificuldades em trabalhar as temáticas africanas em sala de aula, especialmente nos Anos iniciais.

“Por conta do aspecto lúdico, muitas abordagens mostram uma África que é só floresta, reforçando um imaginário que é muito redutor”, analisa Ana Paula. Em seu doutorado, ela pesquisou o modo como livros didáticos de Língua Portuguesa têm atendido à obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira.

Para Eduardo Estevam Santos, professor de Historiografia do curso de História do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, campus dos Malês (BA), a escola deve deixar de lado a representação homogênea da África, “para mostrar as especificidades de cada país africano, que tiveram suas histórias atravessadas de forma violenta por Portugal”. Começar por mostrar as localizações dos países no mapa, ele diz, é um primeiro passo nesse reconhecimento da pluralidade africana. Clique aqui para baixar um mapa com informações sobre os países africanos que têm o português como língua oficial

“As escolas, de uma maneira geral, ainda deixam a desejar e trabalham apenas as datas comemorativas ou destacam as características do continente africano com um olhar exótico”, avalia a professora Larisse Moraes, que leciona educação para as relações étnico-raciais com turmas da Educação Infantil até o EJA na EMEF Saint Hilaire, localizada no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre (RS). Desde 2017, ela está na dianteira do projeto Afroativos, coletivo que trabalha conscientização, empoderamento e ressignificação da cultura afro. A iniciativa inclui a participação de toda a comunidade escolar na programação, que se estende por todo o ano.

No projeto, Larisse elaborou a ação “O continente africano que a mídia não mostra” com uma série de apresentações que destacam as características históricas, sociais e culturais dos países e ressaltam as contribuições africanas nas mais diversas áreas do conhecimento, “deixando de lado a visão de África como reduto de fome, pobreza e selva”, conta. Clique aqui para conhecer material usado por ela com turmas variadas, inclusive de Anos iniciais. 

Ao longo de 2020, também foi feita uma série de lives com professores, estudantes e demais profissionais dos países africanos com temas variados para mostrar as realidades mais fiéis sobre a história, a cultura e a Educação nesses locais. O coletivo Afroativos ainda elaborou calendário com datas importantes para a cultura afro-brasileira e que invertem a lógica da história formal, de visão eurocêntrica, com destaque para as revoltas quilombolas e mártires negros. Para o futuro, Larisse prepara lançamentos de livros, HQs e outras ações que têm sido fonte de inspiração para outras escolas no país e de outras nações da América Latina, como na Argentina. “É importante estar sempre antenado em novas nomenclaturas, em conceitos que vão mudando a partir do momento em que vamos estudando mais sobre todos os temas étnico-raciais”, avalia Larisse.

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