Ainda faz sentido ensinar o gênero carta?
Em plena era digital, parece anacrônico aprender a ler e a escrever cartas. Mas a BNCC prevê o trabalho sobre o gênero - e existe um porquê para isso
Notícias vindas de outras cidades, países e continentes, desabafos existenciais, pedidos de ajuda, declarações de amor: escritas que atravessaram os séculos em envelopes selados, com remetentes e destinatários de todas as partes do mundo. Assim são as cartas, consideradas o meio de comunicação mais antigo da humanidade.
Mas tudo mudou com a internet. Mensagens que levariam semanas para chegar ao destino agora atravessam o planeta em milésimos de segundo. As cartas estão em desuso. Será que aprender sobre cartas ainda é útil?
Rosaura Soligo, doutora pela Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora de projetos do Instituto Abaporu de Educação e Cultura, afirma que as cartas estão mais vivas do que imaginamos. “Se esquecermos a ideia do selo, do envelope e da fila nos correios, veremos que escrevemos cartas frequentemente, mas em outro formato, como o e-mail, por exemplo”, observa a pesquisadora, que escreveu cada capítulo de sua tese em forma epistolar.
A carta é, inclusive, um excelente gênero para a alfabetização porque é um exemplo claro de que a escrita existe para dizer algo a alguém. “Ouvir a leitura de cartas pessoais escritas por escritores, ou por pessoas da comunidade, por exemplo, informa às crianças as razões de se produzirem textos, permite que se aproximem de outras pessoas”, garante Marly.
A pesquisadora Rosaura Soligo chama a atenção para outro ponto: ensinar crianças a escrever cartas não é seguir os moldes de um texto formal e padronizado. Para ela, a grande questão é ter um contexto comunicativo real para que o aluno vivencie a potência da carta - seja ela em um formato mais tradicional ou em forma de mensagens de WhatsApp e e-mails.
A BNCC e o sentido do trabalho com cartas
O gênero carta está presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nas habilidades de Língua Portuguesa para o Fundamental 1 (do 1º ao 5º ano) e têm grande importância na formação de alunos produtores de textos. Isso porque a carta, em essência, é uma situação comunicativa entre duas pessoas que tratam de um assunto de interesse comum. E isso independe do suporte.
Veja abaixo alguns exemplos de habilidades da BNCC que falam sobre as cartas:
(EF03LP12) Ler e compreender, com autonomia, cartas pessoais e diários, com expressão de sentimentos e opiniões, dentre outros gêneros do campo da vida cotidiana, de acordo com as convenções do gênero carta e considerando a situação comunicativa e o tema/assunto do texto. (BNCC, p. 121)
(EF03LP13) Planejar e produzir cartas pessoais e diários, com expressão de sentimentos e opiniões, dentre outros gêneros do campo da vida cotidiana, de acordo com as convenções dos gêneros carta e diário e considerando a situação comunicativa e o tema/assunto do texto. (BNCC, p. 121)
(EF04LP10) Ler e compreender, com autonomia, cartas pessoais de reclamação, dentre outros gêneros do campo da vida cotidiana, de acordo com as convenções do gênero carta e considerando a situação comunicativa e o tema/assunto/finalidade do texto. (BNCC, p. 121)
(EF04LP11) Planejar e produzir, com autonomia, cartas pessoais de reclamação, dentre outros gêneros do campo da vida cotidiana, de acordo com as convenções do gênero carta e com a estrutura própria desses textos (problema, opinião, argumentos), considerando a situação comunicativa e o tema/assunto/finalidade do texto. (BNCC, p. 121)
Como se vê, a BNCC mantém o trabalho com cartas pessoais, apesar dessa prática ter caído quase em desuso. Isso porque, como já foi dito, o gênero é uma porta de entrada para os outros gêneros da era digital, como o e-mail e o WhatsApp.
Mas há, ainda, mais um argumento a favor das cartas. “Hoje, cada vez mais, temos que mobilizar gêneros do campo de atuação da vida pública para fazer reivindicações dos nossos direitos, reclamações, em geral. Assim, os gêneros carta de reclamação, carta de solicitação, carta de leitor, petição, comentário de leitor entre outros marcam a atuação cidadã e, de certa forma, guardam em comum com a carta pessoal alguns aspectos da estrutura”, reforça Marly.
Para além desses pontos, Rosaura Soligo enfatiza que a escrita de uma carta deve ser uma experiência real, inclusive com destinatário, uma vez que, para ela, o texto escrito perde o sentido se não for destinado a alguém. “Uma vez recebi uma carta de uma amiga professora que viajou para Portugal e contou coisas interessantes sobre as escolas de lá e eu li para os meus alunos. Eles ficaram encantados porque era uma situação real, com pessoas reais”, conta.
Em resumo, o estudo do gênero abre a possibilidade de trabalhar diversas habilidades úteis em muitas outras situações. “O coração da escrita é produzi-la para alguém que vai ler o seu texto. Quando trabalhamos com um projeto de correspondência, é imprescindível pensar em quem será o destinatário. Essa é uma habilidade fundamental a ser desenvolvida: escrever o texto considerando quem será o seu leitor”, diz Rosaura.
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